Via Coletivo Feminista Classista São Paulo

Retrocedemos 27 anos de luta com uma canetada!

“O que é obsceno? Obsceno? Ninguém sabe até hoje o que é obsceno. Obsceno pra mim é a miséria, a fome, a crueldade, a nossa época é obscena. ” – Hilda Hilst.

Antes de 1970, a maioria dos países considerava a homossexualidade não apenas doença, mas, também, um crime. Desde o final do século XIX, ativistas homossexuais lutam contra a criminalização, concomitantemente ao avanço feroz e preconceituoso de “pesquisas” que buscavam patologizar a homossexualidade.

Ao longo desse século – e não tão distante dos nossos dias atuais -, várias práticas que buscavam a “cura” da homossexualidade – considerada homossexualismo para os pseudocientistas – utilizaram-se de vários métodos de tortura, como choques elétricos, castração química e física, trazendo danos inimagináveis das mais variadas ordens às pessoas que eram submetidas à essas abomináveis práticas.

As lutas LGBTs se iniciaram a partir da Revolta de Stonewall (Nova York/EUA), em 1969, em que uma série de violentas manifestações espontâneas da comunidade LGBT se manifestaram contra a invasão policial naquele bar. Esses motins são considerados como o evento mais importante que levou ao movimento moderno de libertação e à luta pelos direitos LGBT. As Paradas LGBTs, por exemplo, surgiram em comemoração a essa Revolta travando o enfrentamento pela aceitação da sociedade e a derrubada da visão da homossexualidade como patologia.

Há mais de 27 anos que a homossexualidade foi retirada da Classificação Internacional de Doenças, CID-10, deixando de ser considerada, enfim, uma enfermidade pela Organização Mundial de Saúde (OMS), marcando o dia 17 de maio de 1990 um avanço contra a discriminação de gênero e orientação sexual.
Mas, após quase três décadas, no dia de ontem, 18 de setembro de 2017, em uma decisão retrógrada, o juiz federal, da 14ª Vara do Distrito Federal, Waldemar Cláudio de Carvalho, em audiência, concedeu liminar permitindo que profissionais da saúde, como os psicólogos, ofereçam a terapia de reversão sexual, conhecida popularmente como ‘cura gay’ – “tratamento” este proibido pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) desde 1999.

Com a referida liminar, até que seja revertida – que é o que esperamos – fica permitido, então, que os psicólogos possam atender pacientes homossexuais, buscando curá-los de sua homossexualidade, significando, assim, que a orientação sexual dos LGBTs passa, novamente, a ser vista como doença. Ainda que não possua alcance nacional e imediato, a decisão abre precedentes para que esta discussão conservadora e retrógrada volte a debate, tanto em outras comarcas do judiciário, como dentro do próprio legislativo que já tenta, há tempos, impulsionar projetos de lei com esta temática.

Em síntese, o que essa liminar permite é que agora, mais do que nunca, a população LGBT continue a ser vista como doente, ou como uma aberração, como alguém que precisa ser tratada e que, caso rejeite tal ajuda (tão generosa, não?), precisará ser evitada, rejeitada, isolada, submetida a tratamentos compulsórios via tortura ou, quem sabe, morta. É válido traçar a discussão de classe sobre esta decisão judicial, afinal, os homossexuais que mais estão em situação de vulnerabilidade são, atualmente, os que não possuem amparo familiar, trabalham em subempregos, estão vulneráveis nos locais e transportes públicos, negros e negras, fora dos padrões e dentro das campanhas de higienização. Ou seja, aqueles que não têm poder aquisitivo suficiente para garantir seus direitos básicos.

Importante registrar que não há nenhuma pesquisa científica que comprove qualquer eficácia da reversão sexual. Clínicas que funcionaram pelo mundo a fora sob esta perspectiva foram fechadas com pedidos de desculpas por não conseguirem curar o que se propuseram. Desculpas estas que não farão nem cócegas às milhares de pessoas que foram torturadas por anos, em função de uma pretensa cura que nunca existiu.

Argumentos velados por uma aparente preocupação, como “e se a pessoa sofre por ser homossexual e quer realizar um tratamento psicológico para deixar de ser gay, não pode?” são insuficientes por dois principais motivos. Em primeiro lugar, homossexuais e bissexuais não sofrem em razão de sua homossexualidade ou bissexualidade, sofrem em razão do notório preconceito social por não serem heterossexuais e em função da latente heteronormatividade predominante, que prega a heterossexualidade como única orientação sexual digna – ou “mais digna” – de ser vivenciada. Segundo, porque não se cura aquilo que não é doença. Homossexualidade não é e nunca foi uma patologia, uma enfermidade e, muito menos, um desvio psicológico ou uma perversão sexual. Deste modo, não pode ser objeto de cura.

Por último e nunca, absolutamente nunca, menos importante, o Brasil é o país que mais mata sua população LGBT no mundo: a cada 25 horas, uma morte. Para melhor ilustrar, no primeiro quadrimestre de 2017, 117 pessoas foram assassinadas no Brasil devido à discriminação de gênero, segundo o GGB (Grupo Gay da Bahia). Importante salientar, também, que esses dados são apenas a ponta do iceberg, visto que há estatísticas governamentais sobre crime de ódio onde, evidentemente, devem estar enquadradas as discriminações por raça, gênero e orientação sexual, não esquecendo que as principais vítimas são os das classes mais pobres.

A partir desses dados, torna-se necessário reafirmar o recorte de classe e raça dentro das especificidades de gênero. Dentro da população LGBT, a parcela que mais morre é dos homossexuais e transexuais negros e pobres. Isto porque estão expostos aos mais variados tipos de violência e trabalho precarizado. De tal modo, quase nunca podem pagar por uma terapia, e quando têm acesso a este tipo serviço, é via SUS, que a depender do bom senso, ausência ou presença de preconceito do profissional, o paciente terá sua subjetividade negada e rejeitada, onde lhe dirão que tudo aquilo que ele é não passa de um desvio patológico, ou seja, ele é a personificação da doença, enquanto o psicólogo o portador da cura. E se, por fim, a tão almejada cura não chegar? A morte com certeza chegará mais rápido.

O Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro se junta a todos LGBTs que lutam contra tais atrocidades e convoca todas e todos a não se calarem diante de tamanho retrocesso!

Não passarão!