Maternidade negada e as mães da Juventude Negra

 

Por Larissa Gouveia*

 

”Nossos mortos têm voz!”, esta frase puxa o protesto de mães de jovens que entraram nas estatísticas de morte causada pela violência estatal. Violência esta, que tem fortes raízes escravagistas nessa pátria que um dia foi colônia. Antes de começarmos a falar sobre mais uma das facetas do extermínio da população negra, daremos foco para elas, afinal de contas quem são as mães da juventude exterminada? São mulheres negras, que não raras vezes são invisibilizadas dentro das inúmeras reivindicações que lutamos e exigimos dentro do movimento negro. ”Nossos mortos têm voz!” e essa voz é exaustivamente expressada pelos gritos dessas mães que antes de terem sido mães, são mulheres negras. Tentaremos mostrar como historicamente essas mulheres tiveram um papel feminino diferente do que era posto como natural, e esse papel feminino não tinha espaço para nada a não ser o de trabalhadora braçal. Enfatizamos como a maternidade-mesmo essa que hoje, felizmente, está sendo desromantizada- foi negada a essas mulheres.

Em ”Mulher, Raça e Classe”, Angela Davis discorre um pouco sobre a criação de uma nova natureza feminina. Ela afirma que mulheres negras eram vistas primeiramente como trabalhadoras e só depois como procriadoras que garantiam o crescimento da força de trabalho escravo. ” Eram “fazedoras de nascimentos/breeders”- animais, cujo valor monetário podia ser calculado precisamente em função da sua habilidade em multiplicar os seus números. Sendo consideradas como “breeders”, em oposição de “mães”, as suas crianças podiam ser vendidas para longe delas como se vendiam as crias de animais.” (DAVIS, 2013, p. 12). Não eram considerados gente, eram meio de produção, apenas. À elas também não foi garantido as condições minimas para quem gesta uma vida e nem após o nascimento da criança, esta, para sobreviver era incorporada ao trabalho da mãe. Civiletti (1991) relata que em registros de viajantes era observado o […] ”hábito das negras amarrarem os filhos às costas a fim de conciliar o trabalho com os cuidados à criança”. Uma tradição cultural amplamente utilizada em África e também pelas indígenas, que se perdurou e se tornou necessária para a manutenção do vínculo mãe e filho no mundo do trabalho escravo.

Isso na melhor das hipóteses, quando a criança ficava com a mãe, pois não raras vezes acabava sendo vendida para longe dela. ”Dei à luz treze crianças e vi a maior parte delas vendidas para a escravidão e quando chorei com a tristeza de mãe só Jesus me ouviu! E não sou uma mulher?”, disse Sojourner Truth em palavras simples, mas que transpareciam o quão o grupo ao qual ela pertencia a tirou até o direito a sentimentos como a fragilidade humana, condição mínima inerente ao ser social nesse tipo de sociedade em que vivemos. Não vem daí o mito da mulher negra forte que aguenta tudo? Ou que não tem escolha, pois a ela foi imposto passar por situações que arrancaram dela até o direito de sofrer, exigindo uma fortaleza imposta pelo sistema que sempre massacrou com mais força quem estava na base?
Ademais, também foram recorrentes os casos de abortos provocados, infanticídio juntamente com o suicídio delas, que preferiam a morte a uma vida de controle, desumanização e exploração.

É preciso dar ênfase em como a jurisdição marcou ponto ao legalizar o extermínio da Juventude negra em 28 de setembro de 1871. A Lei do Ventre livre, a priori parecia a salvação para essas mães que ansiavam a liberdade de seus filhos. Mas que na prática se colocava como pura formalidade, estabelecendo vínculo com a marginalização. Até os 8 anos de idade, as crianças ficariam sob a autoridade dos proprietários de suas mães. Após os filhos negros dos escravizados atingirem a idade estabelecida, o senhor da mãe teria a opção de receber do Estado uma indenização pela perda da propriedade ou de utilizar-se dos serviços do menor até a idade de 21 anos. Atentamos também para o fato de que se uma criança nascida no ano em que a lei foi instituída (1871) permanecendo explorada pelo senhor da mãe até a idade estabelecida, só seria
livre em 1892, quatro anos após a abolição da escravatura. Estes sujeitos foram expostos a todo tipo de violência e segregação racial, desde a Lei da vadiagem (1941) até os percalços dos “Autos de resistência” (1984).

A negação da maternidade sempre intrisecamente ligada a barbárie, ao extermínio da juventude negra brasileira e a condição de resistência que contrapunha a violência sistêmica e Estatal, com seus aparatos repressores. Se em mais de trezentos anos elas resistiram de todas as formas como podiam – seja se organizando em Quilombos, produzindo menos nas plantações, os colocando nas Rodas dos Enjeitados, provocando abortos ou cometendo infanticídio para não dar ao seu filho uma vida onde a condição mínima de humanidade era negada e ao sistema, menos um a ser explorado-oprimido, até os dias de hoje quando continua a carregar as amarras com nova roupagem, batalhando para criar seus filhos, lutando para que eles não sejam alcançados fatalmente pelo genocídio. Algo que infelizmente acontece. Surge no Brasil, em 2006, um movimento chamado Mães de maio. Este movimento se organiza depois da morte de 564 pessoas durante 10 dias no estado de São Paulo. A maior parte dos casos, apontam pesquisadores, fazia parte de uma ação de vingança dos agentes de segurança do Estado contra os chamados ataques da facção Primeiro Comando da Capital (PCC), que se concentraram nos dois primeiros dias do período.

Hoje, este ataque, registado entre 12 a 20 de maio é considerado a maior chacina do século XXI no Brasil. O movimento é composto principalmente pelas mães, familiares e militantes dos movimentos sociais, todas (os) pedem mais do que o fim da violência do aparato militar. No estado de Alagoas, mais de 1.500 jovens negros foram assassinados no ano de 2015, segundo os indicadores registrados e apresentados pela Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Alagoas (OAB-AL). Sobrevivemos em um dos estados que mais mata a população negra. Lutar contra o genocídio é lutar contra o sistema que explora, oprime e faz uma higienização étnica.

Entre em um bairro periférico e tente conhecer cada mulher que perdeu um pai, um irmão, um filho para o “guerra as drogas” e/ou a violência do aparato militar. Garanto que em cada esquina encontrará pelo menos uma. Essas mulheres são as vozes que os nossos mortos têm. Elas têm voz, cor e classe. Lutam para que não exista o perfil suspeito padrão, para que as estatística não mostrem apenas números, para que o resto de sua família não entre nestas estatísticas, por melhores condições de mobilidade nas periferias e tudo isso não pode ser descolado da luta pela destruição desse sistema que nos divide, fragmenta e extermina.

 

 

*Pedagoga, militante do Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro e do Partido Comunista Brasileiro (PCB).

 

Fontes:

 

BRITO, G. Mães de Maio: a reação contra a violência do Estado. Brasil de fato, 2016. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/…/surgido-da-dor-maes-de-m…/> Acesso em: 26 nov. 2017.

DAVIS, A. Mulher, Raça e Classe. Tradução Livre. Plataforma Gueto, 2013.

CIVILETTI, M. V. P. O CUIDADO ÀS CRIANÇAS PEQUENAS NO
BRASIL ESCRAVISTA. Fundação Carlos Chagas. Cadernos de Pesquisa, n. 76, 1991.

G1 Alagoas. Mais de 1,5 mil jovens negros foram assassinados em Alagoas, diz OAB. Disponível em: <https://www.google.com.br/…/mais-de-15-mil-jovens-negros-fo…> Acesso em 26 nov. 2017.

TRUTH, S. Não sou uma mulher?. Convenção de Mulheres em Akron, Ohio, 1851. Disponível em: <http://kandimbafilms.blogspot.com.br/…/nao-sou-uma-mulher-s…> Acesso em: 26 nov. 2017.