A forma como a Luta Antimanicomial é comumente entendida, seja em suas expressões nos serviços de saúde mental hoje existentes, seja no processo de formação de profissionais da saúde mental, ou em nossa consciência e ações enquanto usuários e familiares de usuários dessa rede de saúde, é parcial e apartada da realidade e do propósito da existência dos manicômios, e não por acaso.

O Manifesto de Bauru, apresentado em dezembro de 1987 no II Congresso Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental, definia o manicômio como sendo “a expressão de uma estrutura, presente nos diversos mecanismos de opressão desse tipo de sociedade”.

Sabemos que o Capitalismo cria e se utiliza de formas de opressão para continuar sobrevivendo. A raiz do racismo, a partir do escravismo, está na necessidade de acumulação primitiva do Capital; o machismo cumpriu a função de baratear a força de trabalho feminina para obtenção de mais-valor e de não ter que arcar com os custos da reprodução da vida (Saffioti, 1969 & Federici, 2017); e, seguindo por esse mesmo caminho, o manicômio objetiva dar conta daquelas pessoas que não respondem bem à esse modo de produção (Basaglia, 1979).

Dessa forma, entendemos que não à toa o mesmo Manifesto se preocupa em relacionar essas formas de opressão, em seu trecho seguinte, com a opressão nas fábricas, nas instituições de adolescentes, nos cárceres, e com a discriminação contra negros, homossexuais, indígenas e mulheres. Foram justamente as pessoas da classe trabalhadora que sintetizam em seus corpos as contradições da sociedade de classes e que escancaram um sofrimento que vem da violência da exploração do homem pelo homem, as institucionalizadas em manicômios.

Além disso, a ideologia da classe dominante, que reflete e reitera a concretude da origem das opressões, contribui, também não despretensiosamente, para que abracemos a farsa da origem orgânica e da periculosidade do sofrimento psíquico, que justifica o tratamento violento descrito em diversos materiais que trazem o funcionamento dos manicômios à tona. O resultado disso é o fato de que no Brasil os métodos de tratamento e as condições do Hospital Colônia de Barbacena causaram a morte de mais de 60 mil pessoas. O período em que mais morreram pessoas nessa instituição foi por volta de 1960 a 1970, no início do regime militar.

Os loucos tem cor e gênero: O genocídio do Hospital Colônia

Hospital Colônia de Barbacena é o manicômio mais conhecido no Brasil e um dos mais famosos no mundo, tendo suas práticas negligentes e violentas comparadas com campos de concentração nazistas por visitantes e intelectuais da área da saúde mental. Suas práticas institucionais tiveram fim há pouco tempo, durante a década de 1980.

Durante quase um século de funcionamento, 70% dos internos sequer tinham diagnóstico médico, e eram em sua maioria mulheres negras, privadas da vida social por não serem adequadas para o sistema. As mulheres internadas vinham de situações marginalizadas ou eram desajustadas da norma: eram prostitutas, LGBTQI+, meninas indesejavelmente grávidas por patrões, mendigas, alcoólatras, esposas “neuróticas”, opositoras políticas ou simplesmente inúteis para a família que decidia pela internação, por motivos como negar casamentos arranjados, não desejarem ter filhos, serem tímidas ou muito políticas.

A Colônia era um depósito de pessoas inconvenientes para a ordem capitalista produtiva e as mentes e corpos das vítimas do manicômio foram explorados por décadas, pois, abandonadas pela família, passaram a maior parte de suas vidas em condições subumanas até sua morte ou grave adoecimento físico e psíquico. A desumanização dessas pacientes era justificada pelo rótulo da loucura e da invalidez para a vida social, ao que não havia limites para a cruel exploração da capacidade de resistir a castigos como os choques que eram dados indiscriminadamente, chegando a sobrecarregar a energia elétrica da cidade.

Sem remédios, sem comida e sem infraestrutura, os internos dormiam em capim seco sobre o chão de cimento, junto a baratas e dejetos, no frio severo de Barbacena que os obrigava a dormir uns em cima dos outros: “De manhã, tiravam-se os cadáveres”, diz o psiquiatra Jairo Toledo, que trabalhou na Colônia no início da década de 60. A banalização da morte dessas pessoas e o número constante de óbitos pelas práticas tortuosas do manicômio se transformou num mercado rentável com a comercialização de corpos e ossadas para faculdades de medicina, tirando toda a dignidade da vida e da morte.

Para Angela Davis (2018), é preciso reconhecer que o castigo “não é uma consequência do crime na sequência lógica e simples oferecida pelos discursos que insistem na justiça do aprisionamento, mas, sim, que a punição — principalmente por meio do encarceramento (e às vezes da morte) — está vinculada a projetos políticos, ao desejo de lucro das corporações e às representações midiáticas do crime”. Dessa forma, reconhecemos que toda instituição carcerária opera de maneira desumanizante, e o atual sistema prisional não se afasta dessa lógica.

Nise da Silveira e a Luta Antimanicomial

Nise da Silveira protagonizou, junto a trabalhadores e trabalhadoras dos serviços de saúde mental, e a familiares de usuários e usuários do serviço, a Luta Antimanicomial tão bem expressa no Manifesto de Bauru.

Suas práticas dentro dos próprios manicômios já eram notadamente avançadas, já que não considerava os loucos como passivos ou incapazes e buscava desamordaçá-los das consequências físicas e psíquicas das inúmeras contenções mecânicas e químicas que sofriam, além do que toda desumanização desses verdadeiros locais de despejo produzia na consciência e subjetividade dos internos. Para isso, Nise se utilizava da arte e construía quadros de pinturas junto aos pacientes.

O que não é comumente divulgado, no entanto, é o posicionamento político da Dra. Nise da Silveira, que, sendo a única psiquiatra formada em uma turma de 150 homens, era também comunista e foi presa enquanto tal entre 1936 a 1944, período da ditadura do Estado Novo. Depois de anistiada, Nise retorna ao Centro Psiquiátrico onde trabalhava, mas encontra-se com o avanço e adoção do eletrochoque no tratamento de esquizofrenia. É ao se recusar a tratar os pacientes dessa forma, que a psiquiatra foi transferida para o setor de Terapia Ocupacional, onde realizou as práticas supracitadas.

Manicômios nunca mais!

Assim como a luta anticapitalista é constantemente apropriada pela burguesia e seus setores e transformada em reformas e pautas isoladas, a Luta Antimanicomial, que obteve avanços inquestionáveis, também foi e é constantemente cooptada pelos donos dos meios de produção e pelo Estado, seu fiel representante.

Em 2001, a Lei nº 10.216, instituiu um novo modelo de tratamento aos chamados “portadores de transtornos mentais” no Brasil, que objetiva a criação dos Centros de Atenção Psicossocial, que distribui o cuidado em saúde mental para a Atenção Primária em Saúde, e que regulamenta o funcionamento dos hospitais psiquiátricos de forma a torná-los o “último recurso” no tratamento em saúde mental (Brasil, 2001). Essa lei, no entanto, só é constante e efetiva na característica de ser instável, sendo sujeitada às nuances das necessidades do capitalismo no Brasil, acobertadas e sanadas governo a governo.

Diante disso, o que se vê na realidade é o sucateamento da Saúde Mental Pública, a continuidade da discriminação com as pessoas em sofrimento psíquico grave e, atualmente, o retorno de práticas manicomiais, como o maior período de internação, o uso de eletrochoque (que nunca saiu de voga em vários lugares), o abuso das contenções mecânicas e químicas (que também nunca deixou de acontecer) e a internação compulsória escancarada. Além disso, a precariedade dos espaços de cuidado em saúde mental e das condições de trabalho dos servidores da saúde pública é evidente.

Para concluir, voltamos ao Manifesto de Bauru para lembrarmos que, ao referir-se à sociedade capitalista como base de mais essa forma de opressão — o manicômio, os próprios trabalhadores da saúde mental admitem, junto à isso, a impossibilidade de separação entre a luta antimanicomial e a luta anticapitalista, como fica claro no seguinte trecho:

“Lutar pelos direitos de cidadania dos doentes mentais significa incorporar-se à luta de todos os trabalhadores por seus direitos mínimos à saúde, justiça e melhores condições de vida. Organizado em vários estados, o Movimento caminha agora para uma articulação nacional. Tal articulação buscará dar conta da Organização dos Trabalhadores em Saúde Mental, aliados efetiva e sistematicamente ao movimento popular e sindical.”

Nesse sentido, o Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro, faz eco com os trabalhadores e trabalhadoras que participaram da Luta Antimanicomial e defendemos que o posicionamento antimanicomial é um posicionamento anticapitalista! Não há o fim dos manicômios sem o fim de toda essa estrutura social que é violenta em sua essência! Manicômios nunca mais!

Bibliografia:

ARBEX, Daniela. Holocausto Brasileiro, 2013.

DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas?, 2018.

FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa, 2017.

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