A Mulher e o Trabalho Doméstico

 

Por Larissa Gouveia* e Paula Santos**  

 

‘’Dizer que a doméstica prega a luta de classe é mentira. Mas que a doméstica vive a luta de classe, vive! Toda hora, todo dia! Agora se você chegar com essa palavra ‘’luta de classe’’, a doméstica vai dizer que não conhece a luta de classe. Mas no dia-a-dia você está vivendo a luta de classe. Isso é direto na carne’’. (CARVALHO, 1982, p. 59)

 

A citação acima foi retirada do livreto ‘’Só a gente que vive é que sabe: depoimento de uma doméstica.’’ Nele, Dona Lenira Maria de Carvalho, uma camponesa do interior de Alagoas, relata sobre sua vida como mulher nordestina que migra para outro estado em busca de melhores condições de vida e sustento, empregada como trabalhadora doméstica na capital de Pernambuco nos anos 1950; posteriormente, no período da Ditadura civil-militar, encontra na Juventude Operária Católica (JOC) o despertar da militância se vendo enquanto parte de uma classe. Dona Lenira descreve os pesares que é ser uma mulher pobre numa sociedade patriarcal, a desvalorização do trabalho doméstico e da trabalhadora doméstica até mesmo dentro de nossa classe, pela divisão do trabalho doméstico como trabalho improdutivo, as dificuldades de organizar sua categoria e a importância de se enxergar no outro e entender que a organização de todos os trabalhadores numa perspectiva de mudança radical da sociedade é essencial para a libertação das pessoas que sofrem com as desigualdades sociais.

 

Acreditamos que todos conseguem ter a percepção do quanto o trabalho doméstico é desvalorizado e de como a trabalhadora é historicamente precarizada no nosso país, que tem raízes escravagistas que refletem a desigualdade e mantém na base da pirâmide social aquelas que foram relegadas ao espaço doméstico e ao trabalho braçal. Entretanto, precisamos trazer a tona algumas questões que elucidam fatos por vezes ignorados. Para entender como a mulher foi socialmente empurrada para o espaço privado e do lar, necessitamos entender como foi constituída a sociedade dividida em classes, já que a base da mesma é o patriarcado e a propriedade privada.

 

Engels (1984) analisou como viviam as sociedades primitivas, relatou como se desenvolveram os tipos de família e convivência entre a comunidade, a partir da organização social. Nos tempos primórdios, a primeira forma de organização social foi gregária. A partir da necessidade de criar seus meios de subsistência, surgiu-se o trabalho, possibilitando extrair da natureza o essencial à vida. As mulheres trabalhavam igualmente com os homens, e a tarefa de criar os filhos também era coletiva. Tudo o que era produzido por um era distribuído para os outros, não existindo, assim, produção excessiva.

 

Na medida em que a quantidade de pessoas aumentava na tribo, as relações sociais tornaram-se mais complexas, desenvolveu-se a agricultura e a pecuária ao longo do tempo. Com o alargamento desse processo, começaram a produzir mais do que o necessário para a sobrevivência daquele grupo. A partir desse processo, surge a propriedade privada, a mulher começava a ser reprimida e a sofrer uma série de opressões, pois precisa ser a garantidora do nascimento dos filhos do homem que detém as riquezas acumuladas. Nesse mesmo tempo, também surge a exploração do homem pelo homem. O trabalho doméstico, criação dos filhos e tudo o que se refere ao lar passou a ser tarefa feminina.  A propriedade já não era mais bem coletivo, passa a ser privada. Aos homens, foi transferido os espaços públicos, e as mulheres a vida privada.

 

Alguns séculos mais tarde, essas questões tiveram algumas mudanças. No século XVIII, com o crescimento da produção do sistema capitalista, as mulheres foram forçadas a trabalhar nas fábricas. Nesse período, o uso da força de trabalho da mulher tornou-se cada vez mais intenso e explorador. No continente americano, onde os territórios foram comumente invadidos pelos exploradores europeus e colonizados durante as expedições marítimas, houve a escravização da população negra posta como propriedade e meio de produção. A força de trabalho da mulher que foi escravizada foi direcionada de outra forma. As negras e indígenas,  não faziam apenas trabalhos do lar, sua força de trabalho era também explorada intensamente nos engenhos, nas fazendas, sendo produtoras de riquezas à classe dominante que detinham o poder dos territórios colonizados. Muitas delas eram obrigadas a deixar de cuidar dos seus filhos para trabalhar nas casas dos homens brancos como ama de leite, babá, governanta, cozinheira, passadeira, e outras consecutivas tarefas que servissem ao Senhorio.

 

Dona Lenira retrata os obstáculos que vivenciou quando passou a tomar consciência de classe e dos direitos que deveria reivindicando o que deveria ser direitos de sua categoria. Fazer greve como, se boa parte delas não tem carteira assinada que assegurava alguns direitos básicos e se o local de trabalho muitas vezes é o local de moradia? Segundo ela ‘’todo mundo sofre, mas sofre individualmente. Não é como na fábrica, por exemplo, onde todo mundo trabalha no mesmo local’’ (CARVALHO, 1982, p. 27). Outro peso construído em forma de subdivisão da classe trabalhadora, que carrega os percalços da divisão sexual de trabalho, onde o trabalho doméstico é trabalho da mulher, foi a categorização do trabalho produtivo e do trabalho improdutivo dos trabalhadores enquanto classe revolucionária.

 

Dizem que a doméstica não produz, pois não gera mais-valia em uma casa de família em contraste com a operária que produz tecido nas fábricas, por exemplo. Mas segundo as sábias palavras gravadas no depoimento de Dona Lenira (1982, p. 43) ‘’A gente não produz coisas que vá dar dinheiro. Mas a gente produz dentro dessa sociedade. E foi isso que na medida em que eu descobri, eu não me vejo mais uma doméstica isolada no meio do mundo, só com as minhas companheiras dentro dessa sociedade. Eu me vejo dentro de tudo! Até que me prove o contrário, eu participo com as minhas companheiras dentro dessa sociedade. Quando eu cozinho para esses caras que estão lá discutindo, para esses médicos, para esses engenheiros, para tudo, eu estou dando uma contribuição. E eu estou dando uma contribuição também, eu e as minhas companheiras, quando eu estou trabalhando dentro desse país. Eu estou fazendo alguma coisa porque, com tudo que eles querem nos marginalizar, a gente ainda luta para trabalhar, para sobreviver. Na medida que eu luto para sobreviver dentro do país, eu sou responsável e eles têm que ser responsável pela gente também. E isso é que não existe; isso é que é marca. Então eu acho que a doméstica faz parte do mundo operário. Quando eu digo mundo operário entra tudo: comerciário, tudo… E a gente doméstica também. Mesmo que a doméstica não esteja considerada assim na faixa da produção, como dizem, a gente faz parte de um mundo de trabalho. Só que a gente trabalha em lugares diferentes. E atua diferente.

 

No Brasil, ainda existe grandes reflexos da colonização e exploração das mulheres negras. O trabalho doméstico permaneceu sendo uma das principais ocupações postas como alternativa para a população negra após a falsa abolição. A luta das trabalhadoras domésticas enquanto classe no Brasil é uma luta das mulheres negras. Laudelina de Campos Melo foi uma trabalhadora doméstica, militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e sindicalista que ficou conhecida como ‘’o terror das patroas’’, se tornando referência na luta de organização dessa categoria. Em 1936 fundou o primeiro sindicato de trabalhadoras domésticas do Brasil, tinha como sonho a construção do Poder Popular e entendia que as empregadas domésticas, muitas vezes tratadas como escravas, precisavam se organizar para conquistar direitos trabalhistas. Costumava provocar reuniões de mulheres negras para fazer piqueniques em praças onde apenas brancos costumavam frequentar. Atos considerados de extrema ousadia durante as décadas de 1950 e 1960, sendo atrativo para os jornais. No meio sindical estimulou dois tipos de ação: a solidariedade entre as trabalhadoras enquanto parte de uma categoria composta majoritariamente por mulheres negras e pobres que são precarizadas de forma intensa e a alfabetização das trabalhadoras domésticas, pois acreditava que esse seria o primeiro passo para despertar a conscientização e entendimento da legislação trabalhista e consequentemente reivindicação dos direitos da classe.

 

Nos dias atuais, as trabalhadoras domésticas continuam a realizar múltiplas jornadas de trabalho, expostas às piores condições de trabalho, além do cuidado da casa e dos filhos. Vivenciam no dia-a-dia a incerteza dos direitos que a categoria tão bravamente lutou para conquistar.  Demissão, xingamentos, isolamentos, revistas vexatórias e restrições de uso de banheiros também são formas de opressão e repressão das trabalhadoras domésticas. Vale ressaltar que, a orientação sexual vitimiza homens e mulheres por assédio moral.

 

As mulheres dedicam duas vezes mais tempo que os homens às atividades domésticas, trabalham, no total, cinco horas a mais que eles. Ao todo, a jornada das mulheres é de 55,1 horas por semana, contra 50,5 horas deles. Dentro da sociedade patriarcal em que vivemos, é pouco comum um homem ajudar sua companheira nas tarefas domésticas, o que se reflete em mais horas de trabalho na conta da mulher que trabalha fora de casa. Mesmo trabalhando mais horas, as mulheres têm renda menor, de 76% da remuneração dos homens.

 

O que é ressaltado na pesquisa é que a dupla ou tripla jornada de trabalho segue as afastando do trabalho, mesmo elas sendo responsáveis pelo sustento do lar. Também é enfatizado que os cargos de chefia e direção são cada vez menos oportunos às mulheres. As constatações são da Síntese de Indicadores Sociais – Uma análise das condições de vida da população brasileira, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No Brasil, boa parte delas interrompe os estudos e para de trabalhar para cuidar da casa. É importante atentar para o fato de que as trabalhadoras domésticas são em 63% mulheres negras, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2012. Uma herança dos quase quatro séculos de escravização em uma sociedade patriarcal.

 

Entender que a realidade que vivemos é fruto de um sistema de exploração e opressão é fundamental para compreender que fazemos parte do mesmo mundo onde uma minoria detém o poder como classe dominante, ideologicamente e detentora dos meios de produção. Enxergar a trabalhadora doméstica como parte da classe trabalhadora que atua em campo diferente é entender que as ações para a organização delas possuem particularidades enquanto uma categoria marginalizada socialmente, e que fazem parte da nossa classe que é atingida pelos ataques aos direitos trabalhistas, agravadas nos últimos anos por esse governo sanguessuga de Michel Temer, que só serve à classe que explora.

 

 

*Pedagoga, militante do Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro e do Partido Comunista Brasileiro (PCB) em Alagoas.

**Estudante secundarista do Instituto Federal de Alagoas e militante do Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro e da União da Juventude Comunista (UJC) em Alagoas. 

 

Fontes:

 

A Cor da Cultura. Heróis de todo mundo: LAUDELINA DE CAMPOS MELO. Disponível em: < http://antigo.acordacultura.org.br/herois/heroi/laudelina> Acesso em: 10 mar. 2018.

 

BENTO, C. Permanência e mudanças: mulheres negras no trabalho. Carta Capital, 2017. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/economia/permanencia-e-mudancas-mulheres-negras-no-trabalho> Acesso em: 10 mar. 2018.

 

CARVALHO, L. M. Só a gente que vive é que sabe: depoimento de uma doméstica. Cadernos de Educação Popular, Petrópolis: Vozes, v. 4, 1982.

 

ENGELS, F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. 3 ed. São Paulo: Global, 1984.

 

VIEIRA, I. Mulheres trabalham cinco horas a mais e ganham 76% do salário dos homens. Agência Brasil, 2016. Disponível em: < http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2016-12/mercado-de-trabalho-continua-discriminando-mulheres-independentemente-da-crise> Acesso em: 10 mar. 2018.