A brutalidade do racismo
Via Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro e Coletivo Negro Minervino de Oliveira Bahia
“Mais uma criança preta morre vítima do racismo”, não pode e nem vai ser assim esse texto. Precisamos começar a estampar nomes e fotos dessas pessoas que têm suas vidas ceifadas por esse projeto de sociedade que explora e descarta vidas como se fossem mercadorias.
Nas últimas semanas temos acompanhado o grito de indignação crescente ao assassinato de pessoas pretas ao redor do mundo, o estopim com o assassinato de George Floyd ascende em meio a uma crise econômica e epidêmica, em que a população mais pobre e negra segue pagando com suas vidas em detrimento dos bancos. Enquanto no Brasil, a indústria e o presidente querem o retorno das atividades, “para a vida seguir como antes”, independente das mortes e da vida da juventude negra sendo ceifadas em nosso país nas últimas semanas.
Perdemos João Pedro, vítima de operações policiais enquanto brincava com os primos, perdemos Iago, também na mesma operação, perdemos João Pedro enquanto entregava cestas básicas para famílias da comunidade em que ele morava. Eles se somam as crianças e jovens negras e negros que não terão seus sonhos concretizados e carregam as marcas do racismo que ameaça a vida das famílias que não temem a vida de seus filhos, enquanto precisam garantir sua sobrevivência.
Essa semana foi Miguel quem morreu, Miguel que tinha apenas cinco anos de idade e naquele dia precisou, como muitas crianças pretas, ir trabalhar com sua mãe em plena pandemia. Esse dado por si só já aponta a brutalidade a qual a mulher negra é submetida na nossa sociedade, sendo responsável tanto pelo sustento quanto pelo cuidado, demonstrando o quanto raça, classe e gênero estão entrelaçados no racismo à brasileira e consequentemente na estruturação do capitalismo aqui.
A vida de Miguel teve fim enquanto sua mãe garantia o lazer de um animal doméstico para colocar comida à mesa.A vida de Miguel teve fim enquanto enfrentamos uma pandemia sanitária sem precedentes e sua mãe continuou trabalhando fora de casa para tentar garantir a sobrevivência da família. Assim como dezenas de mulheres, que não tem condições de se manterem em quarentena, tendo o racismo como fator fundamental dessa impossibilidade, tanto na perspectiva da herança escravagista que mantém as trabalhadoras domésticas trabalhando durante a pandemia, quanto na estrutura genocida do Estado que não garante um auxílio digno para parte dessas trabalhadoras e nega o parco auxílio para outra parcela significativa.
Não sei o que dói mais, ver que a vida de Miguel custou um passeio de um cachorro ou imaginar a dor dessa mãe que se sacrificou ao longo desses cinco anos para garantir a sobrevivência dessa criança e teve ver que sua patroa, Sarí Côrte Real (primeira dama – e o melhor termo é esse mesmo para não esquecermos que as marcas escravocratas ainda vivem em nosso cotidiano – de Tamandaré – PE) colocar uma criança dentro do elevador para que a criança caísse de 35 metros de altura. E não tem como medir palavras para essa situação.
A única coisa que essa mãe preta conseguiu expressar foi sua frustação dela ter se dedicado à cuidar dos filhos de Sarí, e sua mãe ter cuidado de outras crianças da família Côrte Real, e quando seu filho precisou de alguns minutos de cuidado, Sarí o empurrou para a morte.
Em matéria divulgada pela Folha de São Paulo hoje (4), no mesmo dia que a morte de Miguel foi amplamente divulgada nos noticiários, o IBGE apontou que 39,6% das mulheres pretas estão em atividade remuneradas de cuidado de outras pessoas. Além disso, 94,1% das mulheres pretas também precisam realizar os afazeres doméstico e a renda média de um trabalhador branco, que faz menos trabalho doméstico, é 73,9% maior que o salário da população negra.
São dados que nos fazem entender porque Miguel estava com a mãe no trabalho e porque a mãe estava trabalhando na pandemia. A população negra precisa trabalhar muito mais, dentro e fora de casa, para receber muito menos.
A patroa, Sarí Côrte Real que teve seu nome preservado pela justiça, está respondendo em liberdade por homicídio culposo. O Estado justificou esse assassinato e vendeu essa liberdade por 20 mil reais, além de resguardar seus dados, mesmo se sabendo quem é ela e seu marido, prefeito. Enquanto a alguns anos atrás, aquela mãe que expropriou uma lata de leite para alimentar seu filho tem liberdade negada pelo STF e fotos estampadas pelos jornais. O mesmo Estado Brasileiro que continua condenando com seus critérios raciais e de classe, pessoas negras que precisam sobreviver nesse país que não se importa com a vida.
Enquanto o coordenador da Fundação Zumbi dos Palmares considera que o racismo que há no Brasil é “nutela” e chama o movimento negro de “escória maldita”, vidas negras continuam sendo ceifadas de todas formas nesse país, com toda a proteção do Estado para aqueles que cometerem esse crime. Quer dizer, até inventaram um nome para não chamar de crime quando vem das mãos do próprio Estado. Auto de resistência.
O racismo estrutural é imposto à população negra desde seu nascimento até os últimos momentos de suas vidas, infligindo um permanente processo de violência que se materializa das mais variadas formas. Miguel em seus cinco anos de vida com certeza precisou ser privado da afetividade da mãe para que a mesma pudesse te garantir uma casa, alimentação e saúde. Mulheres pretas seguem trabalhando nessa pandemia, nos feriados e nas madrugadas, cuidando dos filhos das brancas, que às vezes até lutam pelo empoderamento da mulher e esquecem da cuidadora de seus filhos que foi transformada em propriedade da família, assim como suas filhas. Como foi o caso de Mirtis, mãe de Miguel, que é neto de outra mulher que trabalhou para a família Côrte Real. Em outros casos, tentando negar a realidade latente, fingem acreditar a as mulheres negras idosas não se aposentam por escolha ou pelo sentimento de estar naquele lar e esquecem que a centralidade é o salário.
Enquanto isso, os filhos das mulheres negras crescem muitas vezes sozinhos, privados da afetividade materna que foi roubada em troca de sobrevivência nessa sociedade. O racismo está tão impregnado que são capazes de transformar trabalhos frutos da herança de um mundo escravocrata, em afetividade. Aquilo que finge ser amor, ela parece até da família, é mais uma brutal violência.
Ser negro no Brasil significa não ter um minuto de paz, se manter vigilante a todo momento. Ao longo de mais de quinhentos anos de história do nosso país, a vida das pessoas negras que construíram essa terra foi marcada com violência e resistência, a todos os momentos. Historicamente negros e negras trabalham para garantir minimamente sua sobrevivência e o dos seus e têm suas culturas criminalizadas, corpos animalizados, negação de direitos, crianças negras não tem o direito de sonhar nesse país.
Se faz cada vez mais necessário o ódio e a indignação que cresce nesse momento seja posto em forma de resistência. Como a população negra neste país vêm fazendo a quase quinhentos anos, assim como os movimentos populares da cidade e do campo. Os filhos da nossa classe precisam sonhar e crescer em um mundo que não mais seja uma ameaça para eles. Os nossos jovens precisam de um mundo que eles possam desejar um futuro, saber que é possível construir algo novo, para todos nós, pra isso, derrubar o que está posto e ter os nossos vivos deve ser bandeira central de luta, para todos os dias.