O surgimento do dia 25 de julho demarca o primeiro encontro de mulheres negras de mais de setenta países que se reuniram na República Dominicana em 1992. A data se tornou marco simbólico da luta e resistência contra opressão às mulheres negras. Para compreender a urgência da criação dessa data é preciso entender o contexto latino americano e caribenho e como as mulheres negras se encaixaram nesse contexto onde a exploração e opressão cercearam suas vidas.

Esse complexo e extenso território possui características históricas, econômicas e culturais marcadas por invasões, exploração das riquezas naturais, profundo extermínio de nativos indígenas e tráfico de africanos que foram coisificados. É importante enfatizar as condições em que negras e negros escravizados sobreviviam. Tinham uma carga de trabalho compulsória e desumanizante, alimentação precária, famílias separadas, violação sexual dos corpos das mulheres, que além de produzir eram obrigadas a reproduzir vidas com frequência que futuramente seriam tomadas como força de trabalho escravizada e o tráfico de escravizados serviu como acumulo de riquezas para desenvolvimento do capitalismo. A história da América Latina está marcada intensamente pela luta contra a escravização, contra a colonização e também permeada de lutas contra o imperialismo.

É válido pontuar também parte da história caribenha relembrando fatos ocorridos em algumas das suas ilhas não tão conhecidas, como a de São Domingos que fez sua revolução pelas mãos de negras e negros que lutavam contra a escravização. O Oeste da Ilha de São Domingos, posteriormente independente como Haiti, era uma colônia francesa. Tinha meio milhão de africanos escravizados, estes, assim como os africanos traficados para outros territórios americanos, não foram sujeitos passivos. Suas histórias foram marcadas pelas rebeliões, destruição de engenhos, envenenamento de proprietários, criação de comunidades independentes como as que conhecemos como quilombos, que eram os chamados maroons. Ao todo foram doze anos de embates intensos que durante seu processo de libertação tiveram lideranças pouco conhecidas na história oficial. Se raramente ouvimos falar sobre Vicent Ogé e Toussaint Louverture, lideranças expressivas no que culminou à revolução do Haiti, o silenciamento fica mais gritante quando pensamos sobre as mulheres na articulação desse processo. Elas existiram, desempenharam papeis fundamentais para a libertação do colonialismo e são ainda menos recordadas que as lideranças masculinas. Alguns nomes de destaque foram: Cécile Fatiman, Suzanne Sanité Bélair, Marie Jeanne Lamartiniere, Marie Sainte Dédée Bazile, Henriette Saint Marc, Marie Claire Heureuse Felicité Bonheur e Catherine Flon.

A mulher negra, comumente secundarizada e por vezes até apagada dos processos de libertação na história, ocupa a base da pirâmide social na opressão estrutural que tem a origem no patriarcado, na propriedade privada e no Estado que legitima as desigualdades, a divisão de classes sociais e as opressões. O patriarcado foi base da criação da propriedade privada e do Estado e essa foi a base para a sociedade dividida em classes. Os estudos sobre o desenvolvimento humano nas sociedades primitivas comprovaram que existiram comunidades que tinham outro tipo de sociabilidade na qual a mulher não ocupava papel inferior. Com o desenvolvimento dessas comunidades, o maior domínio da agricultura, o acumulo de bens e as modificações nas relações que estabeleciam normas entre o novo modelo de família, a mulher foi relegada ao espaço doméstico, privado, à monogamia que só era válida para ela e o homem passou a ser o patriarca, dono da família e da propriedade, assumindo o poder político, econômico e social. Em todas as sociedades com divisão de classes, essa condição de opressão da mulher pelo homem predominou em diferentes graus. Na sociedade onde o trabalho era marcado pela desumanização de negros, a mulher negra ocupou a base e como não houve política pública de integração das negras e dos negros após as abolições, carregamos as consequências de séculos de opressão colonial como a ocupação massiva em trabalho doméstico, falta de acesso a terra, e minoria em instituições de ensino.

Além do mais, diante da crise política e sanitária a qual nos deparamos, que escancara violentamente a disparidade das desigualdades sociais, é imprescindível denunciar como mulheres negras são atingidas e a necessidade da luta por políticas públicas para garantia de direitos necessários a sua sobrevivência. O trabalho doméstico remunerado é a ocupação feminina mais numerosa na América Latina e no Caribe, composto amplamente por indígenas e negras. Segundo as estáticas feitas pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), em 2008, aproximadamente 14 milhões de mulheres dessa região eram trabalhadoras domésticas. Enfatizamos que muitas dessas mulheres trabalham na informalidade sem carteira assinada, dificultando o acesso a aposentadoria. Esse condicionamento estrutural fica ainda mais grave após a Reforma da Previdência em nosso país. O Brasil apresentava um número altíssimo com 18% de trabalhadoras, ficando atrás apenas do Paraguai que registrava 21%. Ao falar sobre as trabalhadoras domésticas no contexto em que atualmente vivenciamos, é necessário considerar que essas trabalhadoras conquistaram direitos trabalhistas no Brasil apenas poucos anos atrás e durante a pandemia a maior parte delas ficaram sem direito a quarentena. Relembramos também o caso da trabalhadora Mirtis e da morte de seu filho Miguel, vitima de negligência da patroa burguesa, de origem e até nome colonial, Sari Corte Real. Precisamos expor as opressões que atingem massivamente as mulheres negras, como a falta de rede de apoio que é consequência de uma ideologia dominante patriarcal na qual o Estado e a sociedade em peso responsabilizam a mãe pelos cuidados à criança e trabalho doméstico, seja ele remunerado ou não; a truculência policial nos bairros periféricos, a superlotação de leitos nos hospitais públicos, o ensino remoto que exclui a camada que não tem acesso integral a internet, o auxilio emergencial negado ou que demora meses pra sair, o aumento da informalidade trabalhista, o encarceramento massivo da população negra e a política de extermínio nos presídios e unidades de internação; a violência obstétrica às mulheres negras, assim como o adoecimento mental causado por inúmeros fatores ligados ao tipo de sociedade em que vivemos. Devemos exigir do Estado que cumpra o que deve. No entanto, também devemos ter em mente que as políticas públicas, extremamente necessárias para nós, existem porque vivemos sob a égide de uma sociedade desigual, dividida em classes sociais no sistema capitalista.

Nós, do Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro, acreditamos que a amenização dessas violências estruturais não bastam. Queremos a destruição total dessas violências e a construção de uma sociedade radicalmente diferente onde mulheres como Mirtis não sejam encurraladas a exercer um trabalho precarizado de origem escravista, que não tenham seus filhos assassinados pela crueldade esmagadora da burguesia, uma sociedade onde não sejamos intimidadas pelas batidas policiais em revistas abusivas pelo nosso perfil étnico, que não tenhamos que crescer ouvindo comentários negativos sobre nossa estética e práticas culturais, algo que interfere profundamente na construção identitária das mulheres negras, refletindo em falta de confiança em nós mesmas, em barreiras para colocações em espaços públicos, em dificuldade de nos impor e em não aceitar menos do que merecemos. Queremos uma sociedade na qual a nossa identidade estética e ancestral seja fortalecida pelo orgulho de sermos descendentes de mulheres que construíram quilombos, levantes, guerras de independência nacional, revoluções, greves e protestos reafirmando que somos protagonistas de nossa história.