A situação que a criança de 10 anos foi obrigada a vivenciar nos últimos 4 anos de estupros cometidos pelo tio, a negativa de realização do procedimento médico em seu estado e o ato estarrecedor de assédio e exposição estimulado pela a ministra Damares e por Sara Winter contra a realização do aborto não são eventos antagônicos. Pelo contrário, são expressões diferentes de uma mesma realidade produzida por essa sociedade patriarcal, que historicamente condenou as mulheres à satisfação dos desejos sexuais masculinos e à manutenção do projeto de família nuclear burguesa.
O aborto permitido em lei em casos de estupro é um direito humano básico que deve ser garantido às mulheres e crianças, sendo que não devem precisar ficar expostas a uma gestação provocada por esse ato de violência. O apelo promovido pela a ministra sobre a saúde e vida da menina é extremamente leviano e considera apenas suas crenças religiosas e a propagação das políticas obscurantistas em nosso país. O que motivou Damares e seus seguidores em nenhum momento foi a proteção da vítima.
Uma gravidez não é uma situação fácil e romântica, como muitos insistem em considerar. É um momento de intensas modificações no corpo e na vida da mulher, que pode ser vivenciada de forma saudável, mas também pode ser extremamente adoecedor e ameaçador à vida. No caso de estupro e da gestação em uma criança de 10 anos, sem sombra de dúvidas, coloca em risco a vida da criança e representa uma situação de adoecimento, frustrações e intenso sofrimento.
Por outro lado, a afirmação propagandeada de que o aborto geraria a morte de uma vida é também uma crença religiosa cristã, que tenta se impor como uma verdade universal. Não existe nenhum consenso científico de quando se inicia a vida. Porém, sabemos que a criança tem toda uma vida pela a frente, que precisa ser protegida e respeitada. Nesse sentido, as atitudes de exposição da menina só deixarão mais traumas e estigmas para quem foi sistematicamente violentada durante sua infância.
É importante ainda ressaltar que as condições raciais e de classe são determinantes neste caso. Se fosse uma criança de classe alta, toda a situação seria conduzida em sigilo, provavelmente em uma clínica “clandestina” com todas as condições necessárias, sem o mínimo de chance de se tornar um caso público.
A exposição da menina ao estuprador é fruto de uma sociedade onde não são garantidos os direitos básicos para crianças e trabalhadores/as, como creches públicas em tempo integral. A criança ficava com o tio porque a avó, uma mulher negra, precisava sair para trabalhar. A sociedade brasileira, estruturada a partir do racismo e da escravidão dos povos africanos, determina uma condição extremamente desigual, com piores condições de trabalho e vida para a população negra.
Também é preciso considerar a importância da educação sexual para crianças e adolescentes. Grande parte das descobertas de situações de violência e abuso sexual contra crianças acontece nas escolas, quando se proporciona um ambiente de diálogo e escuta das crianças, quando são também passadas orientações sobre o cuidado com o próprio corpo e a necessidade de preservação da integridade do corpo infantil diante de qualquer adulto, inclusive de familiares. Neste momento de avanço do fundamentalismo religioso sobre a educação pública, é fundamental defender a permanência da educação sexual nas escolas e creches.
Sara Winter, militante do Movimento “pró-vida”, que foi presa recentemente devido às ameaças inconstitucionais ao Tribunal Superior Federal, tem realizado campanha intensa pela a internet, estimulando a polarização política em torno de um direito previsto em lei, promovendo a perseguição de mulheres e profissionais da saúde envolvidos na realização dos procedimentos. A mesma, em sua rede social, afirmou de forma extremamente racista e xenófoba, que enquanto os franceses legalizavam o aborto até os nove meses de gestação, os imigrantes muçulmanos povoavam seu país. Além do ato racista a notícia é falsa, sendo mais uma forma de sensacionalismo para perseguir os movimentos que defendem a legalização do aborto no país e no mundo. Na França, mantém-se o aborto legal até a 12a semana de gestação.
Não é a primeira vez que o Movimento “pró-vida” persegue e assedia mulheres com o direito de realização de aborto no Brasil. Ano passado, o mesmo grupo realizou acampamento em frente ao Hospital Pérola Byington em São Paulo, tentando impedir a realização dos procedimentos legais. O fundamentalismo religioso trava uma batalha política para retroceder ainda mais os direitos sexuais e reprodutivos em nosso país. Querem naturalizar a violência contida na barbárie das situações de estupro, forçando mulheres a levar adiante uma gestação fruto de algo tão desumano. Não leva em consideração que milhares de mulheres anualmente recorrem a aborto legais ou clandestinos devido aos mais diversos contextos, inclusive em decorrência de violências sexuais (do próprio marido e/ou de outros homens). São inúmeras vítimas do machismo e do Estado capitalista, que lhes nega as condições de decisão sobre o próprio corpo e a própria vida.
Nesse sentido, o Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro vem por meio dessa nota prestar toda solidariedade à criança e sua avó, bem como aos profissionais que mantiveram sua atitude ética diante da situação e garantiram o direito ao aborto. Saudamos também o movimento feminista que se mobilizou localmente para garantir a realização do procedimento de maneira segura para a criança e os profissionais de saúde.
Repugnamos o ato organizado pelo movimento que poderia ser chamado de “pró-morte” ou “pró-perseguição” e convocamos todas as mulheres da classe trabalhadora a se somarem às lutas por uma sociedade que garanta o aborto legal, que possibilite a proteção integral de todas as crianças e mulheres em situações de violência e que rompa com essa sociedade patriarcal, classista e racista.
Não permitiremos o avanço do conservadorismo e do protofascismo sobre os direitos sexuais e reprodutivos das meninas e mulheres. Nos somamos aos atos e movimentos em resposta ao trágico episódio que vivenciamos nos últimos dias e que devem dizer um grande “basta” ao abuso infantil, à cultura do estupro, ao patriarcado e ao capitalismo.
19 de agosto de 2020
Coordenação Nacional do Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro
Filiado à FDIM