Desde a realização do 5º Congresso Feminista Latino-americano e Caribenho o dia 28 de setembro de 1990 passou a ser considerado o “Dia Latino-americano e Caribenho de Luta pela descriminalização do aborto” diante da clandestinidade e mortalidade decorrentes do aborto existentes na maioria desses países. No Brasil temos um histórico estruturalmente enraizado na exploração e opressão de corpos negros. Nas pautas reivindicativas acerca dos direitos reprodutivos sobre o corpo da mulher, a opressão patriarcal permeada de um histórico colonial permanece firme até mesmo nos dias atuais. A Lei do Ventre Livre foi promulgada no Brasil em 28 de setembro de 1871 e o Estado passou a considerar como livres todos os filhos de trabalhadoras escravizadas nascidos a partir desta data, seguindo condições questionáveis que no fim das contas não garantia de imediato a liberdade dessas crianças. Portanto, esta data marca simbolicamente a “libertação” do ventre das mulheres negras escravizadas no Brasil nesse período de desumanização.
A discussão sobre o Aborto que voltou a tona no Brasil nas últimas semanas diante do caso de estupro de uma criança que engravidou e teve garantido o seu direito de realizar o aborto previsto na legislação, o que levou a uma movimentação por parte de parlamentares conservadores e reacionários que além de expor e atacar, tentaram criminalizar a criança vítima deste abominável crime. Este caso específico evidenciou as dificuldades que a maioria das mulheres que não desejam continuar com a gestação passam nesse país que legalmente é laico.
Tentaremos contribuir com esse debate trazendo algumas reflexões importantes. Primeiro é crucial admitir que o tema é tratado de forma hipócrita como um “tabu”, mas que através de dados de pesquisas realizadas ou mesmo nas nossas convivências mais íntimas, sabemos que abortos são realizados. Pesquisas apontam que em 2020, na América Latina e Caribe, em pleno século XXI, os índices de mortalidade de mulheres decorrentes das práticas clandestinas e inseguras de aborto são altos e os reconhecimentos dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres sofrem grande repressão e controle do Estado. De acordo com a Organização Mundial da Saúde – “Abortamento seguro: orientação técnica e de políticas para sistemas de saúde, 2 ed:
Organização Mundial da Saúde e suas atualizações a partir de pesquisas e evidências”, é nos países da América Latina que se concentra a maior incidência de abortamentos em todo o mundo, na proporção de um para cada três gestações, apontando também uma alta significativa na América do Sul, sendo que no Brasil, o número de abortos passou de 25% em 1990 para 34% em 2014.
Atualmente há exemplos de países em que já são previstos mesmo que em casos específicos o aborto legal. Apenas 3 países na América do Sul e Central permitem a interrupção da gravidez independentemente da causa: Guiana,Uruguai, Cuba. O aborto também é liberado sem restrições até a 12ª semana da gestação em Porto Rico, território norte-americano no Caribe, e na Cidade do México. Até 2017, em 7 países latinos o aborto não era permitido em nenhuma circunstância. A legislação foi flexibilizada no Chile no ano passado, mas o procedimento segue proibido por qualquer motivo em El Salvador, Haiti, Honduras, Nicarágua, República Dominicana e Suriname. Em outros países da região, a interrupção voluntária da gravidez ainda é criminalizada, mas pode ser realizada em alguns casos específicos, como risco de vida da gestante, estupro e anomalia fetal. Paraguai, Venezuela, Antigua e Barbuda, Guatemala e Dominica só permitem o procedimento caso haja risco de morte para a gestante. Nos demais países, as outras exceções também se aplicam, com algumas variações menos ou mais restritivas. As regras colombianas, por exemplo, são mais flexíveis do que as da legislação brasileira, pois leva em consideração também a proteção da saúde física e mental da mãe e atualmente, tem atraído algumas mulheres que podem custear o deslocamento e até grupos de apoios às mulheres, como disponibilização de milhas solidárias para as viagens. Vale lembrar que no Brasil, a legalidade é limitada a casos de estupro, risco de vida da mãe ou feto anencefalia.
Ressaltamos que este panorama confirma a ocorrência maior de abortamentos onde a prática é proibida, considerando-se que, na América Latina, somente quatro países permitem o aborto legal: Cuba, Guiana, Porto Rico e Uruguai. Destacamos que o Uruguai foi primeiro país da América do Sul a autorizar o procedimento sem necessidade de apresentar justificação, até a 12ª semana de gestação.
A partir de pesquisas e baseado em evidências, ao contrário do que os conservadores, fundamentalistas religiosos, de direita e ultra-direita defendem, os índices de aborto vêm se mantendo estagnados ou vêm caindo significativamente, como o que já ocorre na maioria dos países europeus em que o aborto é legalizado e tratado como caso de saúde pública. A desinformação e o não acesso das mulheres às políticas públicas de saúde e à educação sexual-reprodutiva, aliada ao racismo e patriarcalismo estruturais constituem um dos elementos do conjunto de empecilhos para a execução do aborto legal na região. Além dessas dificuldades, há o controle social, controle ideológico e controle institucional do Estado “laico” sobre os ventres das mulheres.
Devemos refletir que o aborto é um assunto pouco debatido e tratado como dogma, mas que cotidianamente faz concretamente milhares de mulheres em situações de vulnerabilidades econômico-sociais, trabalhadoras submetidas à precarização e pauperização se tornarem vítimas de procedimentos clandestinos inseguros e mortais na região. O aborto precisa ser debatido como assunto de saúde pública e educação sexual para todo o conjunto da sociedade.
A luta pela educação sexual-reprodutiva como forma de informação no contexto da implementação de políticas públicas de saúde reprodutiva, é uma das consequências de se combater a prática da clandestinidade do aborto. A descriminalização do aborto reivindicada pelo movimento feminista classista deve compreender que o aborto legal representa o acesso à informação e educação sexuais e acima de tudo, acesso à saúde reprodutiva e sexual pública, como um direito da mulher trabalhadora, massivamente das classes populares, pobre e negra.
Nesse sentido, em um contexto no qual o aborto ainda é ilegal para cerca de 90% das mulheres latino-americanas, a criminalização dessa prática vem como um instrumento recorrente e bem preciso de controle dos corpos, reprodução e sexualidade, apresentando claros critérios de raça/etnia, classe e sexualidade. À mulher foi imposto, dentro do núcleo familiar monogâmico burguês, um papel invisibilizado, não pago e dotado uma suposta natureza feminina que é a de gerar filhos e cuidar desse núcleo familiar, possuindo grande importância para o sistema de produção e reprodução econômica social.
Historicamente para todo e qualquer mecanismo que possibilite de alguma forma a subversão desses ditames que determinam o papel das mulheres e a perpetuação desse modelo socioeconômico e cultural de produção e exploração, são criadas formas de manutenção dessa ordem. Desse modo, o Estado e o “Direito Burguês” atuam, essencialmente, com esse papel mantenedor da ordem e como sustentador da opressão, exploração. As práticas criminalizantes agem, dessa forma, fortemente para colocar cada indivíduo social no seu respectivo lugar no sistema de produção e reprodução social, dando curso às múltiplas formas de violência estrutural e opressão patriarcal machista.
E é nessa perspectiva, que a criminalização, a ausência de políticas públicas, a inacessibilidades às políticas já existentes, a desinformação e a inação do próprio Estado quanto ao reconhecimento e busca para reduzir ou superar as desigualdades que continuam marginalizando e matando , impelem as mulheres, em especial, jovens, pobres, negras, indígenas e de zonas periféricas e rurais dos países a buscarem formas alternativas e clandestinas de abortar. Mulheres de todas as classes, cores, etnias, sexualidade abortam clandestinamente, entretanto são essas mulheres que estão às margens do sistema capitalista e que o sustenta com sua força de produção e reprodução social, que morrem diariamente e que são encarceradas pela busca do exercício de autonomia sobre os próprios corpos dentro desse sistema que subjuga cada vez mais as mulheres da classe trabalhadora.
Atualmente, no Brasil, o procedimento de aborto é permitido em apenas três casos: violência sexual, anencefalia do feto e risco de morte materna. Estas condições estão especificadas no Artigo 128 do Código Penal da seguinte forma:
“Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico: (Vide ADPF 54)
Aborto necessário
I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.”
O último acréscimo nas condições em que o aborto é permitido no Brasil foi feito em 2012, através da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 54. A ADPF 54 garante a interrupção terapêutica da gestação de feto anencéfalo. Recentemente, as mulheres brasileiras sofreram com mais um retrocesso na luta pelo aborto seguro. No dia 27 de agosto de 2020, o Ministério da Saúde publicou no Diário Oficial da União a Portaria nº 2.282/2020, que dificulta o acesso ao aborto legal em casos de gravidez decorrente de estupro no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), criando ainda mais barreiras para a realização de aborto legal em caso de estupro.
A partir da Portaria, torna-se obrigatória a notificação à autoridade policial pelo médico, demais profissionais de saúde ou responsáveis pelo estabelecimento de saúde que acolheram a paciente dos casos em que houve indícios ou confirmação do crime de estupro. Ainda, orienta que a equipe médica deverá “preservar possíveis evidências materiais do crime de estupro a serem entregues imediatamente à autoridade policial, tais como fragmento de embrião ou feto com vistas à realização de confrontos genéticos que poderão levar a identificação do respectivo autor do crime”. Outro agravante é que o procedimento da Portaria coloca a obtenção de provas acerca do crime de estupro como prioridade em relação ao atendimento humanizado à mulher, que já se encontra em vulnerabilidade. Assim, a medida viola a confidencialidade entre médico e paciente, a decisão trata as vítimas de violência sexual como suspeitas e possíveis culpadas pelo abuso que sofreram e as afasta ainda mais da assistência médica hospitalar.
É evidente que o poder vigente se baseia em ideais fundamentalistas no que diz respeito à saúde sexual e reprodutiva das mulheres, demonstrando que nossas vidas de nada valem, para além da exploração. A ilegalidade e criminalização do aborto são uma violação dos direitos humanos, da autonomia da mulher, fazendo com que milhares de mulheres recorram a procedimentos inseguros e clandestinos, colocando suas vidas em risco.
A legalização do aborto visa a proteção da vida das mulheres, principalmente as mulheres trabalhadoras mais pobres, pois são elas as que mais morrem ao recorrem a métodos de aborto clandestinos e que são criminalizadas por abortar. Desta forma, as lutas pela legalização do aborto na América Latina e Caribe, apesar de todo retrocesso conservador, surgem como “marés verdes” de movimentos de mulheres que reivindicam a legalização do aborto como direito à vida e à saúde das mulheres.
Educação sexual para prevenir, contraceptivo para não engravidar, aborto legal e seguro para não morrer!
Pelo aborto legal, seguro e gratuito!
É pela vida das mulheres!