Noite de vitória histórica para os movimentos feminista e popular na Argentina
“Aborto legal en el hospital” foi um dos cânticos entoado por milhares de vozes na noite dessa terça-feira, 29 de Dezembro. “Que sea ley” foi repetido incontáveis vezes madrugada adentro. Em todas as províncias milhares de pessoas não dormiram, aguardando o grito final de alegria que certamente sairia das redondezas de Callao e Entre Ríos, e da frente da praça do Congresso ecoaria por todo o nosso continente. Por volta das 4h da madrugada desta quarta-feira, o Senado argentino finalmente aprovou a lei que legaliza a interrupção voluntária da gravidez até a semana 14 de gestação. Foram 38 votos favoráveis, 29 contrários e uma abstenção. Ahora es ley! Hoje, nós vencemos!

Já faz alguns anos que a maré verde passou a tomar conta das ruas argentinas. Os “pañuelos” (lenços) verdes tornaram-se símbolo da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito por idos de 2003, na ocasião de uma das edições do EME (hoje conhecido como Encontro Plurinacional de Mulheres). Não obstante, são décadas de luta para dar a essa campanha a força de mobilizar multidões a ponto de tornar-se inadiável, e foram muitas tentativas para fazer o projeto de lei ser votado. Apenas em 2018, um ano após a explosão do primeiro #ParoNacionaldeMujeres, que finalmente o projeto chegou ao Congresso e foi aprovado pela Câmara de Deputados. Naquele ano, no entanto, a maré verde sofreu uma dolorosa derrota. O projeto de lei havia sido negado por 38 votos contrários, 31 a favor e duas abstenções no Senado. Muitas de nós choramos de tristeza, mas não baixamos a cabeça. Ademais, terça-feira virou dia de sair com pañuelo às ruas, independentemente da ocasião, até a vitória. Incrivelmente, ela chegou dois anos depois.

AFINAL, SOMOS TODAS CLANDESTINAS
Um dos argumentos mais importantes para ampliar o apoio popular em torno da Lei foi investir nas campanhas de informação para a população entender que não se trata de legalizar ou não o aborto, uma vez que este já acontece comumente de forma clandestina. Há estudos do Ministério da Saúde argentino que estimam cerca de 500 mil abortos clandestinos por ano.

A ausência de uma lei que o regulamente, justamente, é a maior causadora de mortes, pois sem acompanhamento seguro e gratuito as chances da gestante que faz a opção pela interrupção da gravidez falecer ou sofrer sequelas é imensa, além de favorecer a existência de clínicas operando sem fiscalização. Trata-se de uma questão de saúde pública, portanto. Nesse sentido, inclusive, votou uma das senadoras assumidamente católica praticante, Gladys González, que ao justificar seu apoio ao projeto questionou: “por que queremos impor por lei o que não podemos impedir com nossa religião?”.

Apesar da maioria no Congresso e no Senado, a votação foi acirrada e a militância que se autodenomina “pró vida” marcou presença com seus pañuelos azuis. Na verdade, embora promulgada a Lei de Educação Sexual Integral ainda em 2006, bem como a Lei de Identidade de Gênero em 2012, o conservadorismo em torno da temática é bastante forte na Argentina. Os índices elevados de feminicídios e violência em razão de gênero ou sexualidade também são sinais explícitos de que a luta precisa continuar.

As campanhas pela legalização do aborto foram marcadas por uma expressiva diversidade, e a pauta que historicamente faz parte da agenda de luta feminista passou a envolver movimentos de pessoas trans, não binárias, partidos de esquerda no geral e alguns setores da direita (seja pelo viés da liberdade, seja pelo viés da saúde). Certamente, a força popular foi a maior responsável para que a Lei se tornasse possível.

#ESLEY – o que mudará?
Assim como no Brasil, a Argentina é um dos países que tipifica o aborto como um crime, e a pena poderia variar de 1 a 4 anos. Com a sanção do presidente Alberto Fernández, a interrupção será permitida até a semana 14 de gestação, e as instituições de saúde serão obrigadas a realizarem-no em um prazo máximo de 10 dias, resguardando-se o direito à “objeção de consciência” (casos em que os profissionais por razões diversas se recusarem a realizar o procedimento) desde que se garanta as condições alternativas.

Desde 1921, a Argentina permitia o aborto apenas em situações de estupro ou de gravidez de risco para a gestante. Com a nova Lei, o pedido de aborto em casos de estupro ou de risco para gestante não terá tempo limite determinado, isto é, poderá ocorrer sem penalidade para além das 14 semanas. Nos demais casos, com menos de 13 anos, o aborto poderá ser realizado com assistência de pelo menos um dos representantes legais; para quem tiver entre 13 e 16 anos, a autorização será requerida apenas se o procedimento afetar a saúde da gestante; e as maiores de 16 poderão decidir sozinhas, independentemente do motivo.

Agora, a Argentina torna-se o quarto país latino-americano a reconhecer o direito ao aborto livre, ao lado de Cuba, Uruguai e Guiana, além de dois estados mexicanos. Dada suas dimensões e a potência dos movimentos que construíram essa conquista, é possível que as mobilizações se fortaleçam pelo continente e a maré verde chegue também no Brasil!

JUSTICA POR FLORÊNCIA GOMEZ
Neste dia histórico, também devemos fortalecer a memória de Florência Gomez, ferrenha militante comunista na Argentina, assassinada na cidade de San Jorge, província de Santa Fé, este ano. Há uma campanha internacional articulada pela Fede, pela Corriente Nacional Lohana Berkins e demais organismos do PCA para que se encontre os responsáveis e reconheça-se o feminicídio como um crime político. Flor foi incansável nas lutas pelos direitos de gênero e sexualidade, nas campanhas pela legalização do aborto e demais espaços de luta feminista.

Coordenação Nacional do Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro
Secretaria Nacional de Mulheres, Gênero e Diversidade Sexual do PCB

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