Por Andressa Bacin, estudante de medicina. Militante do PCB Santa Maria-RS, CFCAM Santa Maria-RS, CE CFCAM-RS e Fração nacional de saúde do PCB
Recentemente, nos deparamos com o caso abominável da Juíza Joana Ribeiro Zimmer e da Promotora Mirela Dutra Alberton de Santa Catarina que usaram o seu poder dentro da estrutura patriarcal da justiça burguesa para impedir que uma criança de 10 anos, estuprada, pudesse aceder ao seu direito a um aborto legal. Alguns dos argumentos usados foram no sentido de impor medo sobre o procedimento de abortamento, chegando a compará-lo com homicídio, alegando que o feto seria retirado respirando e morreria agonizando. Mas, infelizmente, esse não é um caso isolado, muito pelo contrário, a desinformação, mitos e estigmas criados sobre abortamento são uma realidade cotidiana.
A falta de acesso, tanto à informação fidedigna, quanto ao próprio direito de abortar sem restrições são um instrumento de controle do Estado burguês e das instituições religiosas sobre as mulheres e pessoas com útero, visto que nós somos as que temos a imposição social de maternar e seguir criando mão de obra para ser explorada pelo capital para que este siga gerando seu acúmulo. A opressão patriarcal é inerente ao capitalismo, é fruto da propriedade privada, portanto, não há maneira de destruir o patriarcado sem destruir o capitalismo. Como nos disse Angela Davis “Se trata de transformar as estruturas sociais.”
Nos casos de abortamento, teremos os estigmas sociais, estruturais e os internalizados, que se complementam e se sobrepõem entre si. Os sociais estão relacionados com o fato da maternidade ser entendida como obrigação das mulheres. Nos é dito, através das igrejas, instituições e governos, através de suas leis e regulamentações, que não temos opção, que sermos mães é o único caminho possível, e que mulheres que não desejam maternar, ou que, em determinado momento, não podem e decidem abortar, são más, egoístas, promíscuas, que receberão castigos divinos, etc.
Já os estigmas sociais nos condenam por sermos pobres, nos criminalizam, nos empurram para a clandestinidade, pela falta de políticas de saúde pública que acolham, brindem informação e acesso a abortos seguros, no começo das gestações. Os governos dos homens brancos, não estão preocupados se morremos todos os dias por infecções generalizadas, com agulhas de tricô, aros de bicicleta ou algum ácido na vagina. Sua única preocupação é com sua própria ambição e o lucro constante.
Os estigmas internalizados são os que carregamos e que são frutos da estrutura social que condena a mulher que aborta. São sentimentos de culpa ou vergonha que assimilamos enquanto indivíduos que conformam parte da máquina do capitalismo. E os estigmas estão em todos os níveis do sistema, desde a falta de acesso à educação sexual integral, gratuita e laica, passando pelas instituições de saúde que quebram nosso sigilo médico/paciente e nos entregam à polícia chegando até o sistema jurídico punitivista.
Nas portas dos serviços de abortamento legal nos esperam fundamentalistas religiosos, que nos maltratam psicologicamente, inclusive quem consegue legalmente abortar nas três causais permitidas no Brasil, estupro, risco de morte para a mãe e feto anencéfalo. Do lado de fora nos espera toda uma sociedade moldada na misoginia e no machismo, pronta para nos deixar bem claro que não somos donas das nossas vontades e que a maternidade é a nossa única fonte de felicidade e plenitude.
Durante toda essa trajetória de proibição, se criaram vários mitos sobre o abortamento, mentiras que fazem com que o tabu e a desinformação sejam ainda maiores. Por exemplo, que a mulher que aborta entra em depressão, a chamada “Síndrome pós-aborto”, que não é um diagnóstico psiquiátrico válido, visto que não há nenhuma evidencia de conexão entre abortar e ter transtornos psiquiátricos. O que pode haver são sentimentos de tristeza e culpa que são fruto justamente da culpabilização social da mulher que aborta. Quando o procedimento é feito de maneira segura, os sentimentos de medo, insegurança e todo o stress causados pelas incertezas trazidas pela ilegalidade, diminuem e o impacto mental do abortamento é menor.
Outro mito muito comum é que a anticoncepção de emergência, a “pílula do dia seguinte”, seria um método abortivo. Isto é uma inverdade porque a função dela é suspender ou interromper a ovulação, portanto não tem nenhum efeito pós fecundação ou no embrião já implantado no endométrio. A próxima mentira é que a gestação seria mais segura que o aborto, mas sabemos que na periferia do capitalismo, onde imperam as barreiras sociais, jurídicas e econômicas com imensas dificuldades de acesso à atenção pré natal, cuidados obstétricos ou serviços de abortamento seguros acabamos sofrendo um sem fim de complicações que seriam evitadas com a garantia de uma saúde pública de qualidade. Quando isso não é assegurado, se recorre à clandestinidade, métodos arcaicos e sem condições de higiene o que gera taxas altíssimas de mortalidade materna.
Uma outra informação falsa que circula é que a legalização do aborto não o faz seguro. Países que legalizaram o abortamento diminuíram suas taxas de mortalidade materna em até 90%. O dado fala por si só. Mais um mito é o que diz que restringir o acesso a serviços de abortamento é a melhor maneira de diminuir o índice de abortos. Não é verdade! Somente com educação sexual, políticas públicas de saúde sexual e reprodutiva e serviços gratuitos de abortamento é que poderemos prevenir gestações não desejadas e mortalidade materna por complicações do aborto.
O próximo diz que o aborto com medicamentos é perigoso e pode matar. O que é perigoso e pode matar é utilizar chás ou ferramentas arcaicas como cabides. O procedimento medicamentoso é o recomendado pela Organização mundial da saúde, assim como a aspiração manual intrauterina. São métodos relativamente simples e rápidos que oferecem baixíssimo risco. Não existe retirar o bebê e observá-lo enquanto ele agoniza, não existe tal coisa. Essa é uma mentira perversa e mal intencionada.
O último mito da nossa breve análise é que as mulheres usariam o aborto como controle de natalidade. Isso não acontece quando se tem informação confiável e acesso a métodos anticoncepcionais de maneira gratuita. Onde se falha nisso há uma grande quantidade de gestações não desejadas. Precisamos tirar o aborto dos marcos de pecado e delito. Abortar legalmente não é como esse imaginário coletivo de dor e rios de sangue, isso se dá na clandestinidade. O Estado e a Igreja não têm direito sobre nossos ventres.
O aborto não é uma tragédia social. A carga patriarcal da maternidade e de todos os âmbitos da nossa existência que nos é imposta só será superada com o fim do capitalismo e a conquista do poder popular, onde possamos construir uma sociedade verdadeiramente equitativa e conquistemos a libertação da classe trabalhadora como um todo das correntes do capital.
Não pariremos frutos da violência patriarcal.
ABORTO LEGAL, SEGURO E GRATUITO!