Recentemente, a Justiça Militar absolveu dois Policiais Militares acusados de estuprar uma jovem de 19 anos em 2019, na cidade de Praia Grande do Estado de São Paulo. De acordo com o juiz militar Ronaldo Roth, da 1ª Auditoria Militar, “a vítima poderia sim resistir à prática do fato libidinoso, mas não o fez”. A declaração estapafúrdia evidentemente desconsidera a posição de extrema vulnerabilidade da vítima, que por sua vez foi agredida e intimidada dentro de uma viatura por dois policiais armados.
É sistemático o escanteamento da vítima no processo penal, uma vez que o Estado sequestra para si o dano e dita os resultados sem a afetiva partipação, de quem sente a dor, na possibilidade de solucionar os conflitos sociais. Mas no caso das mulheres vítimas da violência ligada ao gênero, essa prática é elevada a outro patamar, o da culpabilização das vítimas. O presente episódio reforça a prática dessa culpabilização ao cobrar da mulher algum tipo de reação incisiva em repúdio aos agressores armados no momento do estupro para, só assim, validar a conduta como criminosa.
Além de salientar como o machismo e a misoginia encontram-se incrustados nas instituições burguesas, a ocorrência enfatiza o caráter estrutural do patriarcado e a sua indissociabilidade com o capitalismo. O propósito da polícia, um dos principais aparatos repressores do Estado burguês, não é o de atender às necessidades de segurança da classe trabalhadora, cujo cotidiano é marcado por situações de violência. O principal objetivo segue sendo a preservarção, proteção e legitimação da propriedade privada.E evidentemente que, a própria violação aos bens tidos como protegidos pelo direito penal burguês e a reação das instituições perante a conduta tida como criminosa, está balizada pela seletividade do sistema de justiça criminal, que irá determinar quem será punido e em que nível.
Com a acentuação da fascistização e militarização da sociedade, consequentemente se intensifica a impunidade de setores mais reacionários, enquanto os filhos e filhas da classe trabalhadora seguem criminalizados por crimes ligados à Lei de Drogas e crimes patrimonias – lógica essa, que por sua vez, é estruturada pelos condicionantes de classe, gênero e raça. A exemplo dessa possibilidade de ampliação da violência legitimada pelo Estado, temos a lei 13.491/2017, que versa sobre a mudança na competência do julgamento de crimes dolosos contra a vida de civis perpetrados pelas Forças Armadas: tal competência, anteriormente delegada à justiça comum, foi transferida à justiça militar.
Tanto a alteração legal, como o caso em questão, revelam o julgamento de crimes graves que atentam contra a vida, a liberdade e dignidade sexual de civis, em que militares são réus, sendo julgados pelos seus próprios pares institucionais. O que nos leva novamente a refletir: a punição dentro do sistema de justiça criminal é para quem? Enquanto nos crimes de violência patrimonial a palavra das vítimas têm substituído inclusive provas periciais, tudo em busca da condenação, nos processos em que a cultura do estupro é escancarada, a palavra da vítima não somente é silenciada, mas retorna com culpabilizações e questionamentos.
Compreendemos que medidas paliativas, que buscam atender as nossas demandas mais imediatas relacionadas à violência contra as mulheres, devem priorizar o investimento, o desenvolvimento e a ampliação das redes de atendimento voltadas à prevenção e conscientização da violência. Reivindicamos o fim da polícia militar, resquício da Ditadura Empresarial-Militar, ao invés do fortalecimento do Estado penal brasileiro – uma instituição de caráter racista, assassina e que atende aos interesses das classes dominantes. Por fim, que possamos pressionar por legislações que garantam uma verdadeira assistência às vítimas das mais variadas formas de violência contra a mulher e um apoio institucional humanizado, a fim de que as mulheres sejam devidamente acolhidas e não revitimizadas. Repost @anamontenegrodf