Mulher Negra tem Direito a Saúde e Educação!
Por Larissa Gouveia*
O povo tem direito a saúde e educação? Esses dois alicerces que constantemente são postos como fundamentais na vida de uma pessoa, sempre estiveram entrelaçados na história de nosso país. Tentaremos mostrar, de forma sucinta, o lugar que a saúde e a educação ocuparam no projeto de eugenia do Brasil, excluindo negros (as), indígenas e mulheres, enfatizando como mulheres negras foram atingidas. Primeiro citamos como a educação foi um instrumento de poder das classes dominantes e como ela, juntamente com a saúde, foram meios de higienização social. Se a educação foi historicamente utilizada como instrumento de manutenção de poder das classes dominantes, dar educação de qualidade, que ultrapasse a formação para o trabalho, às classes subalternizadas (negros, mulheres, indígenas) não era uma necessidade da sociedade dividida em classes, pois a instituição escolar foi planejada para ser um meio eficiente de reprodução das relações sociais de produção e de poder.
A educação brasileira nunca foi uma prioridade. Por muito tempo o Brasil permaneceu como colônia de exploração para fornecer ouro, diamante, açúcar, tabaco, algodão. Sob esse contexto, não havia uma preocupação com a escolarização da população. Vale salientar que as primeiras garantias de direito por meio de documentos oficiais se deram pela Constituição. Segundo a Constituição de 1824, no Título 8, Das Disposições Gerais e Garantias dos Direitos Civis e Políticos dos Cidadãos Brasileiros, especificamente, no Art. 179, inciso 32, que atenta para a garantia da escolarização: ‘’A Instrução primaria é gratuita a todos os Cidadãos. ’’ (BRASIL, 1824). No entanto, precisamos avaliar quem poderia ser considerado cidadão brasileiro nas primeiras décadas do Império. Quem era o cidadão brasileiro que tinha direitos garantidos?
Eram cidadãos brasileiros os que tivessem nascido no Brasil, quer fossem ingênuos ou libertos. Entretanto, o fator cor e condição jurídica estavam extremamente ligados e eram, constantemente, associados. A condição de não-cidadão excluía na condição jurídica o direito a escolarização. Negro não era gente, era propriedade, sem direitos, mas com o dever de ser mão de obra para a produção de riquezas. E a mulher, desde o surgimento da família monogâmica e do acúmulo de riquezas, foi relegada ao espaço privado, sem nenhuma ou com o mínimo de participação do espaço público por muito tempo.
Freire (1993), em seu estudo sobre Analfabetismo no Brasil, discorre como se deu a educação no período do modo de produção escravista, retrata como mulheres, negros, indígenas e pessoas pobres, como um todo, foram interditadas do processo de educação formal. Segundo essa autora, a educação só foi pensada pela política colonizadora como meio capaz de tornar a população dócil e submissa. Com a vinda dos Jesuítas ao Brasil se iniciou esse processo que objetivava a catequese e a formação das elites do Brasil, bem como docilizar os nativos e os filhos de colonos por meio da domesticação, repressão cultural e religiosa. A mulher foi excluída do sistema escolar na colônia. O descaso para com a educação das massas se perpetuou por séculos. Ademais, com a transição do sistema escravista para o capitalismo dependente e o processo de industrialização no país junto com o crescimento urbano, os modelos educacionais e valores civilizatórios europeus foram importados. Principalmente a influência da Escola Nova e os ideais do liberalismo ligados à instrução. Para o país que se movimentava para se modernizar, o analfabetismo era tido como a vergonha nacional. Mas afinal de contas, quem eram os sujeitos analfabetos? Eles sempre tiveram classe social e cor.
Após a abolição, surgiram nossos desafios além da conquista da liberdade, desde então nossa luta se dá contra o racismo e as desigualdades sociais que são frutos dele.
Nas três primeiras décadas do século XX, alastraram-se os debates sobre a constituição física e moral do brasileiro, que faziam parte do projeto para a nação. Segundo Kropf; Lima (2010, p. 79) […] temas como a questão racial, a imigração, a educação e o recrutamento militar entrecruzavam-se na perspectiva de identificar as mazelas e as chances de “regeneração” do país’’. Maciel (1999), em seu estudo sobre Eugenia no Brasil, discorre sobre o Congresso Brasileiro de Eugenia e seus planos específicos para, por meio da pseudociência, civilizar o país. Ela relata que ao analisar documentos congressuais da época, médicos, educadores, jornalistas e intelectuais acreditavam no projeto eugênico. As teses debatidas nesse congresso abarcavam, além da questão da saúde, a perspectiva de que a eugenia se planificaria também pela educação. A questão da saúde, assim como a educação, era posta como um dos fundamentos essenciais para o progresso da nação. Vale salientar que, nesse contexto histórico-social, em 1930 houve a criação do Ministério dos Negócios da Educação e da Saúde Pública (MEC). A higienização de corpos também se daria pela educação. ‘’[…] a palavra-chave do período é “higienização”. Não apenas dos ambientes urbanos, das moradias e dos corpos das pessoas, “higienização” também das pessoas’’. (MAIA; SILVA, p. 122). Enfatizamos também que nesse período o movimento negro organizado se consolida mais. Em 1931, é fundada a Frente Negra Brasileira, bem como outras organizações políticas que lutavam pelos direitos da população negra. Em 1946, Jorge Amado, deputado pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), escreve a emenda constitucional onde é promulgada a Lei pela Liberdade de Culto Religioso (emenda 3.218). Um ganho para a população negra que tem suas religiões rechaçadas e endemonizadas socialmente.
No final da década de 1930, surgem as primeiras políticas públicas para educação de mulheres negras, com o acesso a escola pública elementar a partir do período de vigência do Fundo Nacional do Ensino Primário. Almeida e Alves (2011) avaliam como a ausência e presença de políticas públicas educacionais interferiram na trajetória de mulheres negras. Essas medidas se davam pelas mudanças sociais advindas da revolução industrial e do processo de urbanização, exigindo uma formação técnica para o mercado de trabalho. Entretanto, é importante frisar que naquela época o curso primário possuía caráter de terminalidade, devido à estrutura do ensino. O ingresso no ensino secundário ou profissional exigia um novo processo seletivo, estreitando as oportunidades de continuação dos estudos após o primário. As necessidades imediatas (sustento do lar, comida na mesa) absorveram infâncias e juventudes, interferindo no acesso e permanência na escola.
Vimos que historicamente a educação não nos foi garantida nem como direito. Não foi feita para atender as necessidades de nossa classe. Mas carregamos um legado de luta de trabalhadores (as), movimento negro e movimentos sociais que em muito impulsionaram na conquista do que temos hoje, pela luta organizada. Sendo assim, continuaremos ocupando os espaços que não foram feitos para nós, mas que hoje só é nosso porque foi duramente conquistado pelas mulheres e homens de nossa classe, por isso, é nosso por direito.
Fontes:
ALMEIDA, G. E. S.; ALVES, C. M. C. Educação escolar de mulheres negras: interdições históricas… Revista Educação em Questão, v. 41, p. 81-106. Natal, 2011.
ALMEIDA, G. E. S. História da educação escolar de mulheres negras: as políticas públicas que não vieram… Revista do Programa de Pós-Graduação em Educação. V.15, n.30, p.219-232, Campo Grande, 2009.
FREIRE, A. M. A. Analfabetismo no Brasil: da ideologia nacionalista, ou de como deixar sem ler e escrever desde as Catarinas (Paraguaçu), Filipas, Madalenas, Anas, Genebras, Apolônias e Grácias até́ os Severinos. São Paulo, SP: Cortez Editora, 1993.
MACIEL, M. E. S. A eugenia no Brasil. Anos 90, Porto Alegre, n. 11, julho de 1999.
MAIA, H. J. S.; SILVA, M. A. Educação e Sanitarismo no Brasil, um projeto eugenista realizado. Revista Latino-Americana de História Vol. 5, nº. 15 – Julho de 2016.
PONTE, C. F.; KROPF, S. P.; LIMA, N. T. O Sanitarismo (re)descobre o Brasil. In: FIDÉLIS, C.; FALLEIROS, I. (orgs). Na corda bamba de sombrinha: a saúde no fio da história. Rio de Janeiro: Fiocruz/COC; Fiocruz/EPSJV, 2010a. Cap.3, p. 73 – 112.
*Pedagoga, militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e do Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro.