A história do século XX foi marcada pela presença ativa e intelectual de mulheres que, mesmo com a tentativa de torná-las invisíveis no processo social e político, tiveram um papel fundamental nas lutas que marcaram o mundo contemporâneo. Elas enfrentaram os pontos centrais das questões de gênero, lutaram nas contendas da nossa classe, enfrentaram ditaduras, pegaram em armas para defender a vida e se bateram pelas transformações na sociedade capitalista. Portanto, cumpriram uma intensa jornada de lutas pela emancipação humana. Contudo, tudo isso ocorreu, enfrentando o preconceito e a cultura machista fomentada pela natureza da sociedade de classes.

É nesse período histórico, e dentro do contexto dessas lutas e bandeiras, que Ana Lima Carmo, conhecida como Ana Montenegro, cumpriu uma intensa e marcante atividade político-social ao lado das mulheres e dos trabalhadores do mundo.

Ana Montenegro, nome que assumiu em virtude de uma intensa atividade jornalística na imprensa comunista, aprofundou sua participação nas lutas político-sociais nas manifestações em apoio a uma ocupação, que a população de trabalhadores sem teto fizeram no bairro da Liberdade, em Salvador. Essa luta tornou-se um emblema pela moradia na Bahia e ficou conhecida como a ocupação do “Corta-braço”, em 1947, posteriormente transformada em bairro e chamado de Pero Vaz. Hoje, temos livros (Ariovaldo Matos) e trabalhos acadêmicos sobre essa ocupação vitoriosa, localizada no coração do bairro mais negro da América latina (Liberdade).

Os comunistas do PCB organizaram essa luta e durante a ocupação, que contou com forte repressão policial, se reuniam na pensão (localizada na Baixa dos Sapateiros) da comunista e firme apoiadora do Corta-braço: Maria Brandão. Essa figura representativa das lutas populares era, para Ana Montenegro, o símbolo da mulher que exercia um papel fundamental para combater a discriminação de gênero e afirmar a presença da mulher nas batalhas políticas. Foi um pouco antes desse acontecimento, num contexto de luta social, da militância jornalística, de combate à ditadura do “Estado Novo”, de afirmação das lutas democráticas e de grande participação dos comunistas que, em 1945, nas manifestações/comemorações da independência do Brasil, na Bahia, Ana Montenegro entrou para o Partido Comunista Brasileiro, no dia 02/07/1945, tendo sua ficha de filiação assinada pelo histórico líder comunista, Carlos Marighella.

Ana Montenegro nasceu em 13 de abril de 1915 na cidade de Quixeramobin, no interior do Ceará. Mas, como ela rotineiramente gostava de afirmar: “sou cearense de nascimento, carioca de coração e baiana por escolha”. Das lutas políticas dos anos de 1944/45 (democratização do Brasil, fim da II guerra, anistia para os presos políticos e legalidade para o PCB) à participação na batalha das ideias/lutas populares do intervalo democrático, aprofundaram o compromisso de Ana Montenegro com o devir da história. Foi, sem dúvida, um momento de transformação radical na forma de fazer política e seu engajamento era pleno.

No período do intervalo democrático (1945/1964) Ana Montenegro exerceu uma intensa atividade ideológica, atuando na imprensa comunista e em outros veículos. Publicou centenas de artigos nos jornais: O Momento, Classe Operária, Tribuna Popular, Correio da Manhã, Imprensa Popular, Novos Rumos, etc. Sem falar que foi uma das fundadoras do jornal Momento Feminino e da sua participação na revista Seiva, considerada uma das primeiras revistas dos comunistas no Brasil.

No conjunto das ações que movimentava a prática social de Ana Montenegro, uma começou a ter repercussão central: a questão das mulheres. Participou de instâncias políticas da luta feminista, a exemplo União Democrática de Mulheres da Bahia, Comitê Feminino pró Democracia, Liga Feminina da Guanabara e a Federação Brasileira de Mulheres, entidades com intensa presença de mulheres que participavam das lutas político-sociais e hegemonicamente ligadas ao PCB.

No entanto, o intervalo democrático, período em que – mesmo com tentativas de golpes – teve grande participação social, e foi de intensa mobilização política, encerrou-se com o golpe burgo-militar de 1964. Nesse processo de configuração das trevas, Ana Montenegro teve que tomar o caminho do exílio, tornando-se, portanto, a primeira mulher exilada pela ditadura. Inicialmente aloja-se na Embaixada do México, indo em seguida para este país, depois passa por Cuba (onde mantém contato com líderes comunistas e anticolonialista, a exemplo da vanguarda cubana e de líderes africanos), deslocando-se em seguida para a Europa onde se estabeleceu em Berlim, na Alemanha Oriental.
Estabelecida na Alemanha, Ana Montenegro teve importante papel na organização das lutas feministas e na imprensa que debatia essa questão: foi integrante da seção para América Latina da Federação Democrática Internacional de Mulheres (FDIN), quando trabalhou na revista dessa entidade: Mulheres do Mundo Inteiro. Também trabalhou em organismos internacionais como a ONU e a UNESCO, tendo participado de várias articulações internacionais e congressos que tinham como bandeiras a questão da mulher, da luta de classes e da emancipação humana. Tudo isso, sempre ao lado do operador político que escolheu para combater: o PCB.
Mas, como nos informa o dramaturgo Willian Shakespeare, “não tem longa noite que não encontre o dia”. No Brasil, apesar da repressão violenta da ditadura, as lutas de resistência democráticas e as lutas operárias e sociais conseguiram mudar o quadro político: a anistia, mesmo com restrições, foi aprovada em 1979. Ana Montenegro tomou o caminho de casa, voltou ao Brasil. De 1979 a 1985, ainda sob a tutela da ditadura, ela intensificou a sua militância em várias frentes: a luta feminista, as lutas populares, a defesa dos direitos humanos e o combate interno aos equívocos políticos do PCB, que na época estava em franco processo de ruptura com a sua histórica tradição: operando através dos interesses da ordem.

Após a derrota da ditadura, mesmo com a transição tutelada, Ana Montenegro avançou na luta político-social, atuou no combate ao racismo e aprofundou o debate sobre a questão de gênero. Refletiu, escrevendo, a partir de muita pesquisa e debates, artigos e textos sobre o momento da luta feminista.

Publicou diversos livros: Mulheres – participação nas lutas populares, Uma história de lutas, Ser ou não ser feminista e Tempos de Exílio.
Ana Montenegro atuou na área do direito, foi ativa jornalista, desenvolveu intensa pesquisa histórica sobre os movimentos populares e suas lutas de contestação. Sendo também poetisa, lembre-se do poema que fez em Berlim, no outono de 1969, quando do assassinato do seu amigo e camarada, Carlos Marighella:

Em seu enterro não havia velas:
Como acendê-las, sem a luz do dia?
Em seu enterro não havia flores:
Onde colhê-las, nessa manha fria?
Em seu enterro não havia povo:
Como encontrá-lo, nessa rua vazia?
Em seu enterro não havia gestos:
Parada inerte a minha mão jazia.
Em seu enterro não havia vozes:
Sob censura estavam as salmodias.
Mas luz, e flor, e povo, e canto
responderão “presente”, chegada
a primavera mesmo que tardia!

 

Ana Montenegro, com a sua presença, marcou as lutas feministas e populares do final do século XX. A partir do seu retorno do exílio, atuou primeiramente, no Fórum de Mulheres de Salvador e, depois, no Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres (1985/1989). Tinha como prática constante se dirigir, sempre às tardes, para a sede da OAB – em Salvador – para ajudar nas tarefas da Comissão de Direitos humanos. Foi homenageada em um congresso nacional da OAB, indicada ao Nobel da Paz e recebeu diversas homenagens e comendas de instituições nacionais.
Uma das suas mais firmes convicções era a tarefa de lutar contra a destruição do PCB, tentativa realizada pelo grupo dirigido pelo deputado Roberto Freire. Travou o bom combate, com força e determinação, lutou em defesa do socialismo e da revolução brasileira. Com seu patrimônio político e intelectual deu uma enorme contribuição ao processo de “reconstrução revolucionária” do PCB.

Ana Montenegro, exilada política, separada e mãe de dois filhos, teve um deles (Miguel) morto durante o exílio. Ela faleceu em 30 de março de 2006, em seu enterro o povo, as mulheres simples, o mundo político e intelectual e seus camaradas encheram o salão para um ato político da mais bela homenagem. Seu caixão ao baixar para a cremação estava coberto com a bandeira vermelha do PCB, marcada com a foice e o martelo da luta dos trabalhadores do campo e da cidade, na terra que escolheu como sua: Salvador.
Ana Montenegro, presente!

Fonte: https://pcb.org.br/portal2/7715 por Milton Pinheiro.