Por Marianna Rodrigues*

Há algo muito importante acontecendo no Brasil, apesar das atrocidades do governo genocida de Bolsonaro-Mourão: trata-se do fortalecimento do movimento feminista com viés socialista. 

Os protestos de massa que ocorreram nas últimas semanas tiveram um protagonismo fundamental não só de mulheres, mas de movimentos que defendem abertamente uma agenda feminista, antirracista, assim como de diversidade sexual e de gênero. Este é um importante momento para lembrar que, às vésperas das eleições de 2018, foram justamente esses mesmos movimentos que foram em peso às ruas nos primeiros protestos de massa contra Bolsonaro, naquele momento sob a consigna #EleNão. Isso não se deu à toa, pois como eixos centrais das bases ideológicas de Bolsonaro-Mourão, alistou-se uma coalização neoconservadora reivindicando a “cura gay”, o “fim da ideologia de gênero”, o “estupro corretivo” das feministas e um conjunto de ideais misóginos, transfóbicos e heteropatriarcais, além da retomada do mito da democracia racial. 

Sem uma agenda única de reivindicações, os movimentos #EleNão foram marcados por uma pluralidade muito grande, envolvendo desde setores da direita liberal, até partidos da esquerda socialista. Por uma série de razões, aquelas manifestações não obtiveram a vitória mais esperada naquele momento, que seria a não eleição de Bolsonaro e Mourão. O que faltou? O que mudou de lá até aqui? Enfim, hoje, justamente por termos muitas questões em aberto, analisarmos com maior atenção as nuances da atual confluência de amplos setores para um objetivo comum imediato (a queda de Bolsonaro-Mourão) é uma condição impreterível para decidirmos os rumos das manifestações nas próximas semanas. Até porque, em paralelo à queda, precisaremos dizer algo sobre o nosso futuro ou, mais precisamente, trazer para o centro do debate qual é o projeto de país que queremos defender como uma alternativa a tudo isso que estamos vivendo.

Com a intenção de contribuir para essa discussão, este texto parte de três argumentos principais: I. a massificação do feminismo no Brasil e na América Latina; II. o fortalecimento do Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro e das mulheres no PCB; e III. a possibilidade de uma coalizão da classe trabalhadora e dos movimentos populares por um programa político comum para o Brasil.

As feministas e os movimentos de massa 

Desde o #ForaCunha de 2015, houve uma crescente muito significativa nos atos de rua construídos pelo movimento feminista, com destaque para o 8 de março – Dia Internacional das Mulheres Trabalhadoras – de 2017. Nesse ano, impulsionadas pela primeira paralisação nacional de mulheres na Argentina, algumas organizações e lideranças feministas tentaram construir uma greve internacional de mulheres. 

No Brasil, além das manifestações de rua inéditas em termos numéricos, de fato foram construídas paralisações em março de 2017 – como fizeram as dezenas de milhares de mulheres sem-terra contra a Reforma da Previdência. A mulherada deu a largada para a histórica greve geral de abril, quando  mais de 40 milhões de brasileiras e brasileiros paralisaram suas atividades. 

Sem dúvidas, no ano seguinte, a vitória eleitoral de Bolsonaro-Mourão colocou esses movimentos em uma espécie de ressaca que, recentemente, aprofundada pela situação pandêmica, enfraqueceu bastante as lutas, principalmente nas ruas.  Bolsonaro e seus aliados souberam muito bem aproveitar essa ressaca, e mantiveram uma popularidade razoavelmente alta através de uma agenda de manifestações populares que não parou mesmo em meio à pandemia. 

Não obstante, as contradições da classe dominante rapidamente voltaram à tona, e a posição de classe de Bolsonaro-Mourão, capachos do imperialismo, entreguistas e corruptos, foram suficientes para reavivar a indignação na classe trabalhadora.  Foi o que vimos com os atos massivos contra o governo nas últimas semanas, em torno de demandas por vacina já, emprego e auxílio digno. 

Nesses atos pudemos notar, novamente, a forte presença das mulheres e das organizações feministas, mobilizadas tanto por meio de Partidos, sindicatos e entidades estudantis, quanto de forma autônoma. Levando em consideração o histórico extremamente patriarcal da política brasileira, esse feito não é pouca coisa: deve ser celebrado, e certamente é um efeito daquele ciclo de mobilizações recentes.

Apenas em nosso continente, para termos uma ideia, temos outros exemplos para demonstrar o patamar de massas que atingiu nosso movimento: Chile e Colômbia estão vivenciando uma ascensão de movimentos populares que detêm um forte protagonismo das feministas. [1][2] Chile avança em uma Constituinte que pode derrubar as nefastas políticas da ditadura, e a Colômbia constroi uma grande greve geral para estagnar as reformas neoliberais.

Se é bem verdade que a ascensão neoconservadora não retirou o caráter de massas que o feminismo adquiriu no Brasil e internacionalmente, certamente deve servir de lição para orientar as nossas tarefas nesta conjuntura. Afinal, é um fato que, mesmo em meio aos sucessivos ciclos de manifestações, sofremos muitas derrotas, especialmente no âmbito das políticas sociais, o que escancara os limites do nosso movimento.

Portanto, apesar do inegável crescimento que extrapola as nossas fronteiras, a massificação traz desafios incontornáveis para nossa luta, tema que abordaremos no tópico seguinte. Em síntese, o que quero dizer é que se tornar um movimento de massas é tornar-se também alvo de todo tipo de captura, isto é, assim como o movimento de massas pode ser a guinada para um futuro revolucionário, pode ser também sua mais dura amarra.

Fortalecer o feminismo classista

Este é um momento em que precisamos ir para as ruas muito conscientes daquilo que acreditamos teoricamente e do que queremos construir na prática, tanto quanto precisamos conhecer nossas adversárias e combatê-las com qualidade. Para isso, antes de mais nada, precisamos entender que a jornada de lutas que se iniciou no dia 29 de maio é, na verdade, muito mais do que uma tarefa de agitação. 

Nesse sentido, precisamos destacar o trabalho que temos feito através do Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro (CFCAM), com atuação em todas as regiões do Brasil, ao defender a estratégia socialista do PCB e ao trabalhar as mediações táticas necessárias para as disputas no interior do movimento feminista nos mais diversos locais de atuação. Para citar apenas um exemplo, toda militante do CFCAM tem consciência de que, muitas vezes, é uma situação pessoal de machismo vivenciado particularmente que vai motivar alguém a tornar-se militante orgânica, e é nossa tarefa elevar essa particularidade a uma tática coletiva e a uma estratégia revolucionária que vai ser praticada no dia a dia. O crescimento do número de militantes feministas nas fileiras do PCB e seus coletivos partidários é um termômetro relevante para sabermos que este trabalho tem avançado.

A massificação do feminismo, contudo, torna nossas tarefas muito mais complexas. Por um lado, porque atualmente existe toda uma agenda de organismos internacionais – como a ONU – que implementa programas ao lado de grandes empresas para difundir um determinado tipo de feminismo. Esse feminismo, de caráter empresarial ou neoliberal, está ancorado em princípios de concorrência, empoderamento individual, e impõe o rechaço a quaisquer ações coletivas classistas, uma vez que sua estratégia é consolidar políticas de mercado. Já pensou se a maioria das trabalhadoras deixarem de se ver como consumidoras e passarem a se ver como proletárias? Pois é, para essas feministas, uma organização proletária é um terror!  Já por outro lado, porque a massificação do feminismo também estimula uma reação – que aqui denominei de “coalização neoconservadora” -, cuja estratégia é, precisamente, o aniquilamento desse movimento. 

Em alguns momentos da conjuntura, especialmente ao fazer avançar determinadas reformas, privatizações e retiradas de direitos em prol dos interesses do grande capital, ambas as frações da classe dominante golpeiam juntas sobre a classe trabalhadora e sustentam a já popular contradição de serem “liberais na economia, e conservadores nos costumes”. Já em outros momentos, como agora, aparecem sinais de uma pequena ruptura nesse grande bloco, que pode ser notada através da ampliação de nomes requerendo o impeachment de Bolsonaro, da presença de PSDBistas no último ato em São Paulo e da divulgação de atos do MBL pelo Fora Bolsonaro. 

Diante de um contexto de elevados índices de violência sexual e de gênero, parece fazer todo o sentido que tenhamos a mais ampla unidade de ação contra a barbárie e as sucessivas tentativas de aniquilamento de todo tipo de feminismo e diversidade sexual e de gênero. Ademais, historicamente, fracionar a classe dominante é uma tática que pode ser muito útil para abrir espaço para alternativas revolucionárias. Por esses e outros motivos, importaria menos quem está indo para as ruas contra Bolsonaro-Mourão, e mais como vamos derrotá-lo e que alternativa queremos construir.

Por isso, organizar paralisações, greves ou ações de solidariedade que tragam consigo uma forte denúncia aos ataques do capital são importantes, porque são ferramentas específicas da ação política que não serão endossadas pela classe dominante ou quem se alia a ela. Pelo contrário, serão duramente combatidas, inclusive mediante imposição de multas aos sindicatos, demissões de trabalhadoras/es, perseguições, assassinatos de lideranças. 

Devido ao grande poder de desmobilização que detém a classe dominante e as suas tentativas de captura, fortalecer o feminismo classista vai bastante além das tarefas de agitação e propaganda. Para as próximas semanas, além da mobilização massiva, nossa tarefa será construir as condições para que a derrota de Bolsonaro, Mourão e seus aliados se dê pelas vias da luta da classe trabalhadora, e não por acordos no interior da classe dominante. 

Derrotá-los com um programa contundente

Se há algo aprendido pelos acúmulos históricos do movimento feminista internacional, é que precisamos desenvolver nossa autonomia para enfrentar as duras batalhas do dia a dia – e a nossa autonomia se desenvolve sempre que caminhamos distantes das amarras de quem impõe a dominação. Em palavras mais simples, se, quando nosso agressor está em casa, o primeiro passo para interromper o ciclo de violências é criar as condições para sair de casa (ter onde abrigar-se, o que comer, com quem conversar) ou, ainda, fazê-lo sair, qual é o passo que devemos dar quando batemos de frente com uma questão estrutural, tal qual o grande capital e seus múltiplos agentes? 

Bem, nesse caso, temos uma longa história de movimento operário que desenvolveu como principais ferramentas a greve geral e o movimento de massas. Com muitas dificuldades, o segundo parece estar avançando, mas e o primeiro?

Tivemos experiências recentes no Brasil, como citamos acima, de paralisações massivas que levaram o nome de greve geral. No entanto, essas experiências não foram sustentadas por tempo suficiente para derrotar o programa econômico dos patrões. Geralmente, sob o comando das grandes centrais sindicais e de parlamentares, as mobilizações foram desestimuladas no primeiro acordo possível – mesmo quando o acordo tratava-se de uma explícita derrota. Porém, a história tem mostrado que essa posição conciliatória não reduziu os impactos nas vidas do povo trabalhador brasileiro, até porque várias vezes os acordos foram rompidos pela própria classe dominante.

Por essa razão, uma greve geral precisa ser sustentada por meio de um programa político contundente (com reivindicações inegociáveis, que não seja apenas um programa eleitoral), ainda que mínimo. Caso contrário, a derrota imediata estará dada, e teremos pela frente um longo futuro de trabalho de base para reorganização da classe trabalhadora e novas ferramentas de luta. Agora, se junto à queda de Bolsonaro-Mourão estiver um amplo movimento de massas, impulsionando uma agenda de lutas que culmine em uma greve geral, certamente retiraremos o poder de negociação das  mãos dos patrões e poderemos interferir minimamente no futuro do país. A propósito, não guardemos ilusões: aguardar as eleições de 2022 para inverter concretamente a correlação de forças é um equívoco de análise que vai transformar qualquer governo eleito em um grande curral da classe dominante.

Há medidas em curso muito duras contra a classe trabalhadora brasileira, seja no âmbito dos serviços públicos, seja no âmbito privado. Da reforma administrativa ao aumento do desemprego; dos retrocessos na previdência à inexistência de carteiras de trabalho assinadas; do aumento dos aluguéis às remoções urbanas; da carestia dos alimentos ao fim de programas sociais de alimentação; da privatização da eletricidade e da água ao aumento do preço do gás… A lista de retrocessos é imensa e os usurpadores organizam-se em um mesmo bloco, portanto nada justifica que continuemos agindo de forma setorializada em nossos movimentos, pois isso enfraquece em muito a nossa autonomia de classe. Existem demandas muito explícitas para construirmos uma coalização da classe trabalhadora em torno de um programa comum. O que tem nos impedido?

É nesse sentido que o nosso movimento feminista, como importante organizador de amplas unidades de ação no último período, pode e deve levar seus acúmulos para o conjunto de assembleias, plenárias e reuniões de organização que estão sendo articuladas. Tenho certeza de que temos muitas respostas para várias das questões em aberto atualmente no Brasil, mas para disputar os rumos desse movimento nacional vamos precisar de coragem para enfrentar o medo das falas em público, de organização para dividir o trabalho e achar brechas no tempo para militar/elaborar nossos próprios materiais, bem como de coesão para trabalharmos juntas para assumir o fronte de nossas entidades de representação e demais locais de atuação. 

O mundo já descobriu que nós, feministas, nunca fomos comportadas, e que a paciência já perdemos faz muito tempo. É hora de transformar esse sentimento de revolta em energia para formulação e ação coletiva organizada. Não tem sido fácil, mas precisamos persistir.

Desse modo, com revolta e criatividade, a vitória chegará.

Para continuar lendo:

[1] https://www.brasildefato.com.br/2021/05/27/chile-e-preciso-integrar-demandas-das-feministas-e-povos-originarios-na-constituicao

[2] https://jacobin.com.br/2021/06/na-colombia-movimento-desencadeado-pela-greve-geral-esta-colocando-a-classe-dominante-de-joelho/

*Marianna Rodrigues é secretária política do PCB no RS e integra a Coordenação Nacional do Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro