Por Marianna Rodrigues*
No último domingo, dia 18 de julho, foram realizadas eleições primárias para escolha de candidatos à Presidência no Chile. As primárias não são um método tão conhecido no Brasil, especialmente entre partidos distintos, então vale a pena uma rápida explicação: elas podem ser internas em um único partido ou entre partidos distintos, por coalizões. As primárias internas ocorrem com frequência no interior de Partidos com correntes, como o PT ou o PSOL no Brasil. O que ocorreu no Chile, porém, foram primárias entre coalizões – Apruebo Dignidad (que reuniu partidos de esquerda)e Chile Vamos (que reuniu partidos de direita).
Havia uma grande expectativa sobre o comunista Daniel Jadue, atual prefeito da comuna Recoleta, devido a sua popularidade em meio às mobilizações de rua que levaram à constituinte, e ao crescimento do Partido Comunista do Chile. No entanto, com aproximadamente 680 mil votos ou 40%, ele foi o segundo colocado na coalização Apruebo Dignidad. Em primeiro lugar, com mais de 1 milhão de votos, ficou Gabriel Boric, candidato da Frente Ampla, filiado à Convergência Social. Já pelo Chile Vamos, com 630 mil votos ou 49%, foi eleito Sebástian Sichel, o “independente” que já foi presidente do Banco do Estado do Chile. Ao todo, os dois candidatos da Apruebo Dignidad somaram mais de 1.700.000 (um milhão e setecessentos mil) votos, frente aos 1.300.0000 (um milhão e trezentos mil) conquistados pelos quatro candidatos de Chile Vamos. Entusiasmado com a ampla votação, Gabriel Boric declarou após a sua vitória que “Chile foi o berço do neoliberalismo e será também sua tumba”. Será?! Daniel Jadue, concorrente de Boric, salientou que vai cumprir o pacto e contribuir para campanha em Novembro, além de ter afirmado mais uma vez que o mais votado dessas primárias será, possivelmente, o próximo presidente do país.
Feita essa breve introdução sobre as primárias chilenas, quero comentar 1. a ausência de presidenciáveis mulheres; e 2. a presença do feminismo como eixo do programa de governo. Em primeiro lugar, dos seis candidatos que se apresentaram em duas coalizações, todos eram homens. O cenário nem de longe representa o fenômeno que vimos nas ruas, que conquistou uma constituinte paritária em termos de gênero e que elegeu Elisa Loncón, indígena mapuche e professora da Universidade de La Frontera como presidenta da Assembleia Constituinte. Ainda assim, podemos lê-lo como reflexo da política patriarcal instituída no continente latino-americano, que durante séculos proibiu mulheres de participarem da vida pública – no Chile, por exemplo, foi apenas em 1952 que as mulheres puderam votar pela primeira vez em uma eleição presidencial.
Em segundo, não obstante as diferenças entre os dois candidatos mais votados nas primárias, Gabriel Boric e Daniel Jadue, o feminismo e a diversidade foram eixos de campanha bastante centrais no programa político de ambos. [1][2] Desse modo, apesar da ausência de mulheres presidenciáveis até o momento, felizmente não podemos dizer o mesmo sobre a construção dos programas de governo e as plataformas políticas para o futuro do Chile. Esse dado é valioso, porque demonstra que a presença efervescente das feministas em locais de atuação diversos já está produzindo efeitos concretos.
Que lições podemos tirar das primárias chilenas para pensar o Brasil? Elegi cinco ideias programáticas na plataforma de Jadue, candidato para o qual declaramos nosso apoio, para iniciarmos o debate:
[1] O reconhecimento da plurinacionalidade: já na abertura do programa comunista para o Chile, indica-se a necessidade de reconhecer os diferentes povos e culturas que habitam o território chileno, ou seja, deve-se proclamar a plurinacionalidade.
Chile es un territorio habitado por diversas naciones y pueblos, pero aún no lo asume de manera justa, franca y abierta. Nuestro país debe reconocer su plurinacionalidad, avanzando en verdad, justicia, reparación y memoria para las primeras naciones que habitaron este territorio. Proponemos avanzar hacia la interculturalidad, la autodeterminación y a la integridad cultural y lingüística.
[2] Reestruturação das relações de gênero: também como um pilar central do programa, está a necessidade de uma reestruturação das relações de gênero, afirmando que há uma relação direta entre o modo de produção e as relações de gênero que precisa ser superada.
Una de las principales críticas hacia el modelo actual y que ha tomado más fuerza durante la pandemia es que las grandes empresas socializan sus pérdidas, pero gozan de sus ganancias de manera privada. Esto no solo ocurre en la esfera productiva, sino que también en la reproductiva. Los beneficios del trabajo doméstico y de cuidados son los que se socializan, pero los costos son asumidos de forma privada por las familias y muy especialmente por las mujeres.
Chile exhibe brechas de género persistentes y arraigadas, y por lo mismo, el enfoque de Igualdad de Género será otro de los pilares centrales de nuestro programa. Nos comprometemos a que las políticas públicas sean diseñadas desde el feminismo, buscando así transformar las estructuras que sostienen las desigualdades de género de nuestra sociedad.
[3] A criação de um Sistema Nacional Integral de Cuidados: as/os comunistas propõem um novo pilar na seguridade social chilena, com o intuito de coletivizar e valorizar/remunerar o cuidado, além de reestruturar a divisão social trabalho de forma não sexista.
Se requiere un cambio de paradigma que incorpore el cuidado comunitario como parte esencial en este nuevo Sistema Integral, y deben impulsarse medidas concretas de educación no sexista en todos los niveles, en programas educativos orientados a la redistribución de las tareas domésticas y de cuidado; así como el aumento de las coberturas de transferencias monetarias directas a las personas que cuidan a personas dependientes.
[4] Promover a educação sexual integral: essa é a quinta dentre 26 propostas para enfrentar o patriarcado chileno, envolvendo desde estratégias para emprego e combate ao feminicídio, até interrupção da gravidez sob uma perspectiva feminista.
Promover un contexto educativo feminista, que favorezca la creación de espacios libres de violencia de género, fomente el uso equitativo del espacio entre niñas y niños en los establecimientos educacionales, y ponga fin a los uniformes escolares diferenciados por género.
[5] Garantir saúde para além da reprodução: são sete propostas que envolvem trabalho, cuidados e participação política para o “reconhecimento da diversidade”, dentre as quais está um viés de saúde não reprodutivo.
Aumentar el financiamiento y fortalecimiento de la Atención Primaria de Salud (APS) que propenda a la satisfacción de necesidades y demandas de las personas LGBTIQA+ acompañado de la creación de un plan de salud sexual no reproductiva y el fortalecimiento de la prevención primaria de VIH e ITS.
Elegi essas cinco ideias programáticas para pensar o Brasil porque são oriundas de um acúmulo histórico do movimento feminista internacional, representam demandas concretas e atuais das feministas latino-americanas, embora por diversas razões sejam tão pouco presentes nas discussões políticas da esquerda brasileira. É certo que elaborar um conjunto de sínteses sobre relações de gênero e sexualidade tendo por base a crítica da economia política não é uma tarefa fácil, uma vez que inevitavelmente tocam em reformas estruturais e, inclusive, só tendem a ser incorporadas em programas de governo quando embaladas por mobilizações massivas. Ainda assim, cada vez mais temos exemplos em nosso continente de projetos de país liderados feministas, e isso deve servir de estímulo para continuarmos tentando em nossos próprios territórios.
Por essa razão, sem dúvidas, a presença do feminismo como um pilar fundamental nas primárias chilenas é algo que devemos comemorar, especialmente se tomarmos como parâmetro o fato de que, nos últimos anos, houve um fenômeno de demonização do movimento feminista arquitetado internacionalmente (Donald Trump nos EUA; Erdogan na Turquia; Bolsonaro no Brasil, todos com o mesmo discurso “contra a ideologia de gênero”), com intuito de promover um influxo nas políticas de gênero e sexualidade que vinham paulatinamente sendo instauradas. Não apenas comemorá-lo, como também analisá-lo com rigor.
Por um lado, devemos acompanhar a reação popular à inclusão do feminismo como eixo programático e as dificuldades que surgirão para implementá-lo, após uma possível vitória eleitoral da coalização Apruebo Dignidad em Novembro. É verdade que é difícil imaginar que o mesmo país que recentemente elegeu um presidente como Piñera, com um programa econômico ultraliberal e de tendências culturais conservadoras, irá digerir tão facilmente uma agenda feminista de tendência antineoliberal. No entanto, o próprio Piñera foi forçado a apresentar uma “Agenda da Mulher” em resposta aos movimentos de rua durante seu governo, fato que, somado à constituinte paritária, demonstra a força das feministas chilenas independentemente da corrida eleitoral presidencial.
Justamente, por outro lado, a inclusão do feminismo como eixo programático de distintos projetos exige-nos muito mais atenção. O que difere um programa de outro?! O que podemos incorporar e o que devemos combater?! Essas perguntas são importantes para darmos um basta na ausência de formulações das organizações políticas brasileiras sobre o tema, e respondê-las coletivamente é o caminho que precisamos começar a trilhar com mais força. Em outras palavras, precisamos superar a ideia de que o feminismo é “coisa de mulher”, e elevá-lo a eixo programático de um projeto de país.
Por último, apesar da frustração que tomou conta de todas e todos nós, comunistas que apóstavamos em Daniel Jadue para presidência do Chile, seu discurso após a contagem de votos foi revigorante: assumiu seu papel de vanguarda organizativa, celebrou o salto de qualidade que dará a luta de classes chilena e lembrou-nos que, para governar um país, antes de mais nada, é necessário transformar radicalmente o comportamento entre nós mesmos. Nesse ponto, Jadue referia-se à dificuldade que se teve em construir alianças com diferentes organizações, pois, nas suas palavras, há cerca de seis meses todas e todos ali presentes se viam como adversários, e foi apenas com a pressão de independentes que se construíram consensos. Enquanto os veículos de comunicação atribuíram sua derrota para Boric à mobilização da direita e à propaganda anticomunista, Jadue assumiu para si e para seu Partido a responsabilidade, frisando que “não foi a direita, fomos nós mesmos”.
Finalmente, para concluir, dado que não nutrimos grandes expectativas com as corridas eleitorais nessa conjuntura, o que aconteceu no Chile certamente não foi uma derrota. Na verdade, foi precisamente um passo a mais para a vitória.
[1][2] Os programas podem ser lidos na íntegra via: https://www.danieljaduepresidente.cl/programa-de-gobierno/ e https://sumate.boricpresidente.cl/programa/
*Marianna Rodrigues é Psicóloga, secretária política do PCB no Rio Grande do Sul e integra a Coordenação Nacional do Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro