No mês de agosto, uma mulher negra de 25 anos pulou do terceiro andar de um prédio para fugir da condição de cárcere privado e uma rotina de tortura no ambiente de trabalho, na casa onde deveria atuar como babá. Em entrevistas dadas a veículos midiáticos, ela relatou ter sido trancada no banheiro do apartamento, de onde conseguiu passar pelo basculante, dada a sua extrema desnutrição. Fraturou as pernas após cair no parapeito do segundo andar e, não fosse isso, provavelmente estaria morta.

Essa realidade é chocante, mas não é surpreendente. Ainda neste ano, o marido de Ivete Sangalo, Daniel Cady fez uma declaração pública em uma transmissão ao vivo apontando que o problema da contaminação de Covid na casa da família Sangalo foi devido à obrigatoriedade de folga das funcionárias.

Estamos sob a ordem de um sistema que naturaliza ter em sua engrenagem a marca de sangue. Pode parecer pesado, e é, mas é também assim que funciona o capitalismo, principalmente quando atravessamos momentos de reorganização para ampliar os lucros.

No Brasil estamos vivenciando um combo mortal para classe trabalhadora: uma crise econômica, política, ideológica e sanitária que já levou à morte quase 600 mil brasileiras e brasileiros. A desigualdade social e a ideologia burguesa vitimizam massivamente as mulheres, em sua maioria negras, agudizadas por esta pandemia, na qual vivenciam uma opressão triplamente escancarada: a de classe, a de raça e a de gênero. Dados mostram que 7,2 milhões de trabalhadoras domésticas, em sua maioria negras, com filhos para criar e baixa escolaridade. É a terceira maior categoria de trabalhadores do Brasil, e mais de 73% vivem na informalidade. Não por acaso, a primeira pessoa a morrer nesta pandemia foi uma mulher negra, trabalhadora doméstica, que foi contaminada pelo vírus da Covid-19 pela patroa que havia chegado de férias na Itália.

Neste período, as denúncias de abusos e falta de pagamentos na FENATRAD (Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas) aumentaram 60% nos sindicatos estaduais que atuam – 13 no total.

Ficou nítida a dependência dos ricos em manter o trabalho doméstico: a incapacidade e/ou inutilidade em lidar com as atividades domésticas e com o cuidado com as crianças cotidianamente. Tudo isso escancara os determinantes estruturantes da sociedade capitalista e racista. De um lado, a necessidade real de sobrevivência e a carestia da vida. Do outro, a detenção de dinheiro, valor, poder e limites humanos.

Estamos aqui falando de um sistema que joga algumas pessoas para morte e protege outras. O caso ocorrido em Salvador no mês passado trouxe à tona mais outros casos ligada à denunciada, Melina. Até o momento foram relatados pelo menos 12 outras trabalhadoras domésticas que registraram queixa junto à Polícia CIvil declarando também terem sido mantidas em cárcere privado. A Polícia Militar do governador da Bahia, Rui Costa, uma das mais letais do Brasil para os pobres, garantiu que a torturadora chegasse em casa em segurança.

As raízes colonialistas do trabalho doméstico no Brasil tem fatores particulares históricos que assumem um duplo caráter: de tanto sugar a vida de trabalhadores escravizados explorados quanto objetificá-los, apropriando-se e transformando-os em meio de produção. Este tipo de trabalho pode e deve ser considerado como trabalho braçal, carregando a herança do período colonial sob a mesma égide de exploração da força, do trabalho e dos corpos de mulheres negras juntamente com negação de direitos mínimos, como jornadas extensivas e privação até mesmo das suas próprias vidas. Em pleno século XXI, seguimos o mesmo perfil: 63% das empregadas domésticas ou diaristas são mulheres negras e pobres.

É perceptível a desvalorização do trabalho doméstico pelo baixo valor atribuído e pela grande precarização das condições empregatícias, fato que reverbera diretamente na trabalhadora, mantendo e aumentando a desigualdade e o lugar na base da pirâmide social.

Esta questão nos remete aos fatos que nos levam a entender como a mulher foi condicionada ao espaço privado e do lar e, para isso, necessitamos apontar a constituição da sociedade de classes, já que a base da mesma é o patriarcado e a propriedade privada.

Ao atribuir o trabalho doméstico e o ambiente privado ao ser social mulher, naturaliza-se a associação de tal combinação, como preconcebidas as tarefas de ter que cuidar dos filhos, estar com eles dentro de um lar e operar tudo que surgir enquanto necessidade daquele ambiente, muito provavelmente, habitado por uma figura masculina dominante. Tal pensamento de obrigatoriedade leva a outro: de que o trabalho doméstico não é produtivo pois não gera mais-valia. Mas, se não houvessem as mãos e braços que cuidassem e dessem manutenção diária às vidas humanas, quem teria condições de trabalhar? Tal qual disse Conceição Evaristo, o moto-contínuo do mundo.

As múltiplas jornadas de trabalho, a retirada de direitos, as humilhações e os perigos nos lares alheios continuam sendo a realidade de milhares de mulheres neste sistema, e mesmo após a abolição, estes postos continuam sendo ocupados majoritariamente por pretas. O sistema de escravização deliberou papéis diferentes para a mulher que pertencia à classe e à cor diferentes. Angela Davis aponta a criação de bases para uma ‘’nova natureza feminina’’: o ideal de feminilidade, fragilidade e de maternidade não se encaixavam em mulheres negras, que eram usadas como trabalhadoras e procriadoras para produção de mais força de trabalho – propriedade, alimentando um mercado de escravizados que deu sustentação ao sistema por séculos.

Após a “abolição”, a força de trabalho de pretas e pretos nos mercados hierárquicos deu-se primordialmente através do trabalho doméstico e subalternizado. Até hoje, o Brasil ocupa o primeiro lugar no ranking de países com mais empregados domésticos do mundo onde 92% são mulheres e, de novo, a maioria é negra.

A PEC das domésticas só foi regulamentada em 2015, garantindo alguns direitos básicos: intervalo de almoço, pagamento de adicional noturno, redução da carga horária nos finais de semana e recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) das trabalhadoras. No entanto, os últimos golpes contra a classe trabalhadora, como a Reforma Trabalhista e a ‘’PEC da morte’’ (congelamento de gastos e privatização dos serviços públicos), grandes perdas foram ocasionadas, principalmente para aquelas e aqueles que ocupam a base da pirâmide social. Os direitos da PEC de 2015 não impediram que durante a pandemia contribuísse a crise econômica a aprofundar os riscos, aumentando a taxa de desemprego das trabalhadoras com e sem carteira assinadas e diaristas e, com isso, o medo de perder o emprego segue afetando a saúde dessas mulheres.

O Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro destaca a importância da luta organizada das mulheres, que segue possibilitando melhores condições de vida para nossa classe. Também repudiamos a forma como o trabalho escravizado ainda está enraizado em nosso país nas mais diversas formas.

Nós, militantes comunistas, acreditamos que o caminho da emancipação feminina só será possível com o fim do sistema capitalista que, mesmo quando toma formas mais digeríveis, mantém embaixo do seu véu as práticas mais violentas, capazes de ceifar a vida da classe trabalhadora, principalmente do povo negro. Por isso, estamos organizadas na luta e nas ruas pelo Fora Bolsonaro e o projeto de intensificação da exploração. Mas também estamos nas ruas com uma alternativa para nossa classe, a construção do Poder Popular como um projeto permanente de emancipação da classe trabalhadora.

Coordenação Estadual do CFCAM/Bahia